Dirijo por uma estrada enorme e vazia. O tempo está bom, o céu parece pintado com lápis de cor mais azul que existe e ao lado vejo passar o deserto cheio de formas rochosas impressionantes. É um deserto de filme americano, pois vi mais filmes do que viajei de verdade e nessas horas eles é que impregnam minha imaginação.
Não há nenhuma música tocando, só o barulho do motor do Corcel II. Dou risada da imagem de um Corcel II verde esterco com placa de Araucária cruzando uma highway (to hell?) americana, cheia de xerifes comendo rosquinhas e caçando bandidos enquanto jovens aceleram rumo a algum hotel sinistro ou acampamento bizarro onde morrerão um de cada vez.
O motor é bem barulhento e quase não ouço o ronco do meu pai dormindo ao lado. Meu pai ronca pra caralho, principalmente quando bebe, mas nessa ocasião ele perde a batalha de rimas guturais para a mecânica semi-medieval da lata velha.
A paisagem é linda, mas tudo ao redor é ruído.
Tenho na memória uma cômoda velha cheia de mágoas. Dependendo do dia vou lá e abro algumas gavetas para revirar o passado e decidir o que posso usar que chame menos atenção para o dia que terei que enfrentar. Costumo deixar as coisas mais pesadas trancadas à chave, então há gavetas entupidas de frases humilhantes vazando pelos cantos e outras de memórias de alguém bêbado batendo à porta, que prefiro ignorar.
Tenho na memória uma cômoda velha cheia de mágoas. Dependendo do dia vou lá e abro algumas gavetas para revirar o passado e decidir o que posso usar que chame menos atenção para o dia que terei que enfrentar.
Tento me ater às gavetas menos importantes, como aquela que guarda a mágoa por meu pai nunca ter me ensinado a dirigir. Coisa besta, mas que marca, deixa uns arranhados por dentro.
Era bem ruim ser o único da roda de amigos e nunca ter uma história para contar sobre como foi difícil arrancar na rampa, sobre como o pai deu pito por ter deixado o motor morrer, etc. Isso doía mais quando vinham notícias de que os filhos das outras famílias do meu pai circulavam pela cidade com o seu carro, depois que ele foi embora de casa.
Certa vez uma grande amiga me escreveu um texto de aniversário me desejando um futuro próspero e dizia que havia uma realidade paralela toda futurista onde eu tinha a minha própria espaçonave, uma espaçonave que meu pai havia me ensinado a pilotar. Lembro-me de ler isso e ser invadido por uma crise de choro terrível, como se uma represa interior houvesse rompido.
Estamos agora no Corcel II cruzando uma região montanhosa aleatória dos Estados Unidos e logo nos aproximamos de uma ponte gigantesca, que atravessa um puta penhasco. Meu pai já está acordado e tenta proteger os olhos por causa do sol imenso que estilhaça no para-brisa.
– Pra onde a gente tá indo? Ele pergunta.
– Sei lá, não importa. Tava aqui lembrando de um troço que sempre me incomodou, mas que é tão besta que nunca tive coragem de te falar.
– O quê?
– Sobre esse negócio de dirigir. De dirigir essa bosta de Corcel II.
– Não fala assim que esse carro…
– Caralho, você nunca me ensinou a dirigir. Todo pai ensina o filho a dirigir. Qual o teu problema comigo?
– Não fique de frescura que tem gente que nem carro tem.
– Você nem imagina como essa merda cagou tudo na minha mente.
– Olha essa boca. Ok, é agora quem vem a metáfora sobre a tua falta de rumo na vida?
– Sim, é exatamente agora.
– Tá, então pense nisso: posso não ter te ensinado a dirigir, mas te ensinei a andar.
Estamos no meio da ponte vazia e faz um dia bonito pra caralho lá fora.
Viro o volante com toda força, o pneu derrapa fazendo um barulho assustador, o muro lateral explode, o carro rampa rumo ao abismo e no segundo seguinte estamos voando.
Tipo Thelma e Louise num Corcel II, que patético.
Eu e meu pai, o passado e o futuro. Estamos caindo. Já não há mais o barulho do motor. Tudo é silêncio.
“Eu te ensinei a andar”.
No sonho, estou sempre sorrindo antes do carro explodir.