Na praça de alimentações do shopping, a música ambiente é feita de conversas parcialmente civilizadas, senhas sonoras, histeria adolescente, atrito de talheres e louças, e um pouco de Kenny G.
Todos desviam o olhar de suas bandejas com salada, combinado número 2, hambúrgueres e caixa com restos de batata-frita quando a mulher – calça jeans, blusa de moleton, cabelo loiro encaracolado e olheiras gigantes – bateu palmas e pediu desculpas por incomodar só queria um minutinho da nossa atenção e disse que era portadora do vírus HIV pois tinha sido estuprada e que por causa disso não conseguia emprego e que tinha filhos e não podia olhar na cara deles por não conseguir colocar um prato de comida na mesa e se alguém poderia ajudar com alguma coisa qualquer coisa mesmo, pois
(Uma funcionária da segurança discretamente chega e fala qualquer coisa no ouvido da mulher, que a ignora).
é muito difícil levar uma vida com essa doença o remédio é muito caro as pessoas têm preconceito tem vergonha e por isso pedia que deus tocasse o coração de todos e
(mais seguranças se aproximam e cercam a mulher e ela para de falar).
Dois alunos do Bom Jesus furam o bloqueio e entregam uma nota de dez reais. Ela agradece. A mulher vai sendo empurrada enquanto grita para que ninguém a toque que ela já está indo e não precisa disso que coisa mais ridícula e desumana.
Na praça de alimentações do shopping, a música ambiente é feita de conversas parcialmente civilizadas, senhas sonoras, histeria adolescente, atrito de talheres e louças, e um pouco de Kenny G.
Silêncio. (Silêncio?).
Um sentimento meio incômodo e bolorento toma conta do ambiente, dá quase para tocá-lo no ar. Parece uma vergonha um tanto indefinida, mas também poderia ser apenas medo.
Aos poucos a sinfonia de talheres vai sendo retomada e com elas os olhares meio perdidos e as conversas que se misturam: Que pena. Que susto. Que dó. Nossa, que vida de merda. Tudo mentira, quer dinheiro pra comprar droga. O remédio não é de graça? O governo dá. Não vem no bolsa-família? Tá, mas se coloque na situação, o que você faria? É uma louca, certeza. Caralho, que susto levei quando ela começou a falar. É uma mentirosa, gente assim é tudo safada. Não é bem assim. Sei lá, foda-se a dignidade quando cê tá com fome. Tem que ter coragem pra fazer isso. É muito triste. É bem malandra. Certeza que ela inventou. É bem foda. É. Vamo que deu o horário. Cafezinho antes? Tem reunião às 2h.
Saindo do shopping, sol na cara e todo mundo fazendo careta, o mundo se ajeitando aos olhos, um músico toca saxofone (não parece Kenny G.) enquanto divide a calçada com alunos indo para o colégio, jovens vestindo coletes azuis da Unicef e malabaristas uruguaios esperando o sinal fechar. Parece que todo mundo fala ao mesmo tempo. Carros aceleram e buzinam e ajudam a compor uma canção que é de autoria de todos, mas que ninguém ouve.
Pra onde foi a mulher?