Cresci numa casa que não tinha muitos livros. As estantes e as mesas só começaram a ficar cheias de uma forma meio assustadora quando eu já estava prestes a começar a faculdade.
A porta de entrada para o mundo das letras deu-se por dois caminhos: os gibis e os filmes de terror. Ambos surgiram na minha vida por culpa do meu irmão, um entusiasta do Tio Patinhas e do Peter Jackson pré-Senhor dos Anéis (procure por Fome Animal no Google).
Os gibis me ensinaram que a solidão também podia ser uma coisa boa. Foi com eles que aprendi a ficar quieto num canto, com uma edição no colo e as possibilidades de um universo imenso ao alcance das mãos. Talvez eu nunca tenha saído desse canto, pelo menos gosto imaginar que não.
Os filmes de terror me ensinaram o prazer da catarse quando eu ainda nem sabia significado dessa palavra. Eu gostava muito dessa ideia de pesadelo controlado, de vivenciar uma situação limite junto com os personagens, me cagando de medo, mas ao mesmo tempo ciente de que a realidade estava ali para me proteger. Era só tirar aquele VHS bolorento do videocassete de duas cabeças que tudo voltaria ao normal.
Ok, naquela época eu subestimava a realidade. Só depois de um tempão é que eu fui me dar conta que às vezes ali no filme talvez fosse até mais seguro, era só não ser muito burro, que até dava para fugir do Jason e seu facão.
Bastou perceber que era possível sentir medo lendo uma história, aquele mesmo medo que eu adorava sentir vendo filme com meu irmão, para que eu passasse a virar um rato de sebos e de livrarias.
Enfim, foi nisso aí de ver filmes de terror com meu irmão que um dia a gente acabou assistindo Cemitério Maldito, dirigido pela Mary Lambert em 1989, e a minha relação com a literatura mudou. Sim, com a literatura. É que aquele filme sobre gente enterrada que resolve voltar e aprontar altas confusões me deixou bem impressionado. Tão impressionado que quando descobri que era baseado num livro corri para comprá-lo.
Eis que descobri que o autor era um tal de Stephen King e concomitantemente descobri a compulsão por livros, da qual nunca me curei. Bastou perceber que era possível sentir medo lendo uma história, aquele mesmo medo que eu adorava sentir vendo filme com meu irmão, para que eu passasse a virar um rato de sebos e de livrarias em busca de tudo o que existisse do autor (pra falar a verdade, ainda sou meio assim, mas jamais admitiria isso num texto, já que hoje sou uma pessoa séria que só escreve sobre autores sérios).
Na escola, quanto tive que ler Machado de Assis, eu me apaixonei à primeira vista e passei a ler tudo dele, até as edições traduzidas para o francês. Tô brincando, na verdade eu achei uma bosta, até porque não entendi lhufas daquelas cousas do século XIX. Só fui fazer as pazes com o Bruxo de Cosme Velho, quando já estava mais velho e conseguia entender pelo menos a ironia em sua obra (naquela época não existia Facebook).
Mas antes de chegar a gostar de um clássico, li muita coisa da Agatha Christie e praticamente todos os livros do Paulo Coelho. É sério. Não que eu me orgulhe disso, mas também não nego que o bruxo que não é de Cosme Velho tenha feito parte de minha formação como leitor (aliás, O Alquimista é uma autoajuda estilo Power Point de palestrante motivacional, mas tem uma cena que na época achei bem bonita, era sobre um cara conversando com o vento; e O Demônio e a Srta. Prym tem um plot interessante, talvez você até se divirta, já As Valkírias é simplesmente pavoroso, fuja para as montanhas ou dê de presente num amigo secreto). Tal como os gibis, os dois escritores me fizeram companhia e me ajudaram a ficar quieto lá no canto, quando já não tinha mais livro do Stephen King à disposição (nunca cheguei a gostar de outro autor de terror).
O outro ponto de virada na minha vida de leitor foi quando resolvi ler Crime e Castigo, do Dostoiévski, numa edição horrorosa da Martin Claret. Esse foi o livro que me fez nunca mais conseguir ler algo do Paulo Coelho e também me fez ver que a literatura poderia ser muito mais do que diversão, ela poderia ser algo poderoso que mudaria a minha forma de enxergar o mundo, algo que poderia, vejam só que romântico, mudar a minha vida.
E mudou mesmo. Um dia desses eu conto.