– Amor, eu preciso contar duas coisas desde ontem. Estava esperando o melhor momento, mas acho que não existe uma boa hora pra isso, então vou falar agora.
– Não me assusta assim logo cedo, Arnaldo! Fala de uma vez.
– Eu fui demitido.
– Não!
– Sim.
– Não!
– Sim, eu fui.
– Nossa viagem no final do ano…
– Já era.
– E por quê?
– A crise.
– Só você?
– Não, foram vários cortes, infelizmente.
– Bom, a gente se vira, dá um jeito. Me traz um copo de água com açúcar. Acho que não tem salvação, não, ferrou. Vou desmaiar. A gente vai ter que vender as crianças. Me abana, Arnaldo.
– Calma, a gente sai dessa. Já comecei a procurar outro emprego, estou tentando em uma concorrente.
– A Marcinha tem uma prima que trabalha naquela empresa que recicla algo em São Paulo, tem a ver com isso de sustentabilidade, vou pedir pra indicar você.
Me traz um copo de água com açúcar. Acho que não tem salvação, não, ferrou. Vou desmaiar. A gente vai ter que vender as crianças.
– Na verdade, essa é a segunda coisa que eu preciso contar.
– Ah, pronto. Qual é agora?
– Eu não trabalhava numa empresa de reciclagem que transformava folhas de papel usadas em carros elétricos.
– Oi? Como não? Você não trabalhava na STFP?
– Sim, eu trabalhava, mas eu salvava o mundo de outro jeito. A verdade é que STFP não significa Sistema de Transformação Fenomenal de Papel.
– E O QUE SIGNIFICA?
– Save The Fucking Planet. Eu trabalhava para a empresa fazendo parte de uma equipe ultrassecreta responsável por manter a ordem na Terra.
– Equipe ultra quê?
– A verdade, meu amor, é que eu sou, eu era, um super-herói.
– Seu idiota! Achei que estivesse falando sério. Quer me matar do coração?
– Eu estou falando sério.
– Sim, tô vendo. Tonto.
– É verdade, mesmo.
– Tá bom, então, eu acredito.
– Acredita?
– Não, né? Porra, Arnaldo, você bebeu? Não são nem nove da manhã.
– Meu bem, é sério. Eu não podia contar pra você e nem pra ninguém. Mas agora que fui demitido, depois de 23 anos, não vejo mais motivos pra esconder, resolvi me abrir.
– Tudo bem, vamos supor que eu acredito na história toda. Qual super-herói você era? Demolidor?
– O Demolidor é cego!
– Você passou 23 anos do nosso casamento fingindo que era operador de máquinas sustentáveis, não me surpreenderia se agora chegasse falando “então, sou cego, é por isso que eu dirijo tão mal”.
– Eu não dirijo mal!
– Você arrancou o portão da nossa garagem. Três vezes.
– Não vamos mudar de assunto, a questão é que eu estou aliviado por poder dividir isso com você.
– Qual super-herói, Arnaldo?
– Nós éramos uma equipe anônima, os Super-A.
– Brega. E cadê o seu poder?
– Não dá pra mostrar aqui no quarto, vou botar fogo em tudo.
– Você solta fogo?
– Sim, pelas mãos. Vamos lá no quintal, eu mostro.
– Tipo o Mario com a flor?
– Poxa, para de brincar, é um momento delicado pra mim.
– Pra mim também. Me responde uma coisa.
– Pode perguntar.
– Se isso tudo é verdade, por que a gente tem fogão?