Conheci uma menina, não muito mais do que uma menina, que amava vulcões. E quando falo em “amar” não é uma força de expressão, não é aquele exagero que usamos para nos referir a algo de que até gostamos, mas amar, amar mesmo, não amamos. A menina realmente amava os vulcões, lia sobre eles, pesquisava, escrevia a respeito, e não podia pensar em ventura maior para a sua existência do que poder ir à Islândia – onde, deveis saber, sobejam vulcões.
A Islândia era algo que eu tinha em comum com aquela menina, pois eu também sempre quis ir para lá, mas os meus motivos são outros, bem mais sociais do que geológicos – a Islândia, afinal, é o país em que se conversa sobre livros no cabeleireiro, em que a polícia vem a público pedir desculpas quando mata alguém (o que aconteceu uma vez na história). É provável que eu não tivesse disposição para todas as aventuras a que essa menina me levaria se um dia estivéssemos os dois naquela terra de fogo e gelo.
Talvez eu topasse visitar um daqueles túneis de lava, mas quem garante que aquela menina não iria querer, por exemplo, empreender alguma viagem ao próprio centro da Terra? O livro do Júlio Verne, não sei se vocês se lembram, tem início com a descida da cratera do vulcão Sneffels, islandês por excelência.
Talvez eu topasse visitar um daqueles túneis de lava, mas quem garante que aquela menina não iria querer, por exemplo, empreender alguma viagem ao próprio centro da Terra?
Bem, mas nem só de Islândia vivia a menina apaixonada por vulcões. Há muito o que ler e sobre o que pesquisar mesmo no Brasil. Veja-se o caso de Fernando de Noronha, que um dia foi um conjunto de vulcões com 12 milhões de anos de história. Pois a menina foi para Fernando de Noronha, e não foi porque quisesse um local bonito para promover uma farra: foi para estudar, para ver o que o arquipélago oferece e pensar em estratégias para que os turistas aproveitem melhor aquele patrimônio geológico.
A menina falava em “santuários ecológicos” e eu gosto da expressão, pois considero que há certos lugares que exigem que nos curvemos, dobremos os nossos joelhos, como em um santuário, e adoremos algo ou alguém – Deus, o Universo, o Acaso, seja lá quem for o autor do mistério que, depois de bilhões de anos, permite que contemplemos tal paisagem.
Também pelos Açores andou a menina, pelas ilhas que são, todas as nove, filhas da lava. Contou-me que queria fazer muitas outras viagens, contou-me que gostaria de ter uma vida extraordinária e que faria o possível para que ela se tornasse realidade. E eu olhava para essa menina e a admirava, porque eu, ai de mim, já desisti de ter uma vida extraordinária.
Admirei a sua paixão, manifestada muito cedo por não sei qual memória genética, e o modo como tinha descoberto a razão de ser da sua vida. Ela não se preocupava com festas, ela não estava interessada em procurar um marido para si, ela não manifestava nenhuma obsessão pela aparência do seu corpo – ela estudava vulcões, e assim amava a Terra, assim dava a sua própria contribuição para toda a humanidade.
Ela me lembrava bastante a personagem de um bonito conto japonês, com seus nove séculos de existência, “A princesa que amava insetos”. Ali, uma jovem abre mão dos interesses e das tradições da sua sociedade para se entregar àquilo que realmente a fascinava: estudar insetos. Naturalmente, os outros não a podem compreender, mas a princesa faz uma bela defesa da sua individualidade, a despeito da opinião dos outros. É como a menina dos vulcões.
Na última vez que conversamos, andava muito agoniada com a pandemia, que a fez voltar para casa, que deixou o seu mundo outra vez limitado. Mas eu não duvido que ela tenha uma vida extraordinária. Suas forças internas continuam se movimentando. Um dia, o magma sobe. E onde a lava cair será fértil.