Nicole voltava para casa em uma sexta-feira, o que não significa que tivesse planos para a noite. O único objetivo que tinha em mente era o de arrumar alguma coisa para jantar. Todas as sextas ela tinha o costume de jantar em um restaurante self service na rodoviária da cidade. A comida era má e o ambiente era horrível, mas era o máximo que ela podia pagar – e mesmo assim, frequentemente, lhe invadia um sentimento de culpa, como se esses jantares de toda sexta fossem um luxo de que deveria se envergonhar.
Nos outros dias da semana, ela não jantava, só comia uma fatia de pão, às vezes algumas bolachas. É que ganhava bem pouco e estava sozinha em uma cidade grande. Não era o que tinha em mente, mas foi obrigada a aceitar o cargo administrativo que lhe ofereceram. Na época ela já procurava emprego nos supermercados, e um trabalho em escritório pareceu bem melhor. Trabalhava muito, acordava ainda de madrugada para pegar o metrô e chegar a tempo de trabalhar. Voltava para casa e chegava tarde. Tinha pouco mais de uma hora livre para pensar em si, só que costumava usar esse tempo para repor o sono.
Nas sextas-feiras, nas felizes ocasiões em que jantava comida de verdade, ela só chegava em casa depois das 10. Mas chegava feliz, sabia que no outro dia era sábado e ela não precisaria acordar tão cedo. Vinha sendo assim há vários meses, e honestamente não sei dizer de onde Nicole tirava forças para a sua rotina. Talvez da esperança de que viesse a passar em um concurso público. Mas eram tempos de crise e muitos concursos públicos estavam sendo suspensos.
Naquela sexta-feira, contudo, não havia janta. Ora, imprevistos acontecem com toda gente, sempre aparecem gastos inesperados, e o de Nicole foi o de um dente, um dente cariado que chegou até o canal e provocou uma dor tão absurda que não havia nada a fazer além de pagar um dentista. Isso desequilibrou o orçamento do mês, agora era preciso economizar, agora ela não poderia mais se dar ao luxo de jantar.
Então ela voltava para casa triste, sabendo que também não tinha nada em casa e que ela teria que passar no mercado se quisesse comer alguma coisa. Não sei se você já experimentou essa sensação, mas chega uma hora que todo o sofrimento de uma vida vem à tona, quando todos os dissabores e amarguras suportados heroicamente enfim jorram livremente. Nicole chegou a um desses momentos, e na calçada chorava e bradava contra as injustiças da sua vida.
Muitas coisas são pedidas a Deus todas as noites, mas nem todas são tão singelas quanto algo para jantar.
Não sabia bem a quem dirigir a sua revolta, e então pensou em Deus. Cobrou providências da sua parte, sempre ouvia falar de milagres, coisas que só aconteciam aos outros, pois agora era a hora em que também cabia um milagre a ela. Muitas coisas são pedidas a Deus todas as noites, mas nem todas são tão singelas quanto algo para jantar. Nicole pediu, e pediu sem acreditar muito. Tanto que continuou o caminho até o mercado e lá comprou um pacote de bolacha, o mais barato que encontrou. Já estava um pouco mais serena quando enfim chegou em casa.
O que tenho chamado aqui de “casa” não era mais do que um quarto que ela alugava pela metade do seu salário. Já vinha com cama e guarda-roupa, mas não tinha fogão e sequer geladeira. O banheiro era compartilhado com os ocupantes de outros seis quartos, gente que ela mal via e nunca conversava.
Por isso foi tão estranho quando bateram na sua porta. Pensou que fosse a locatária, mas naquele mês o aluguel estava em dia. Abriu e era um rapaz dos quartinhos. Talvez tivesse outros propósitos que não o da caridade, sei bem como podem ser esses rapazes dos quartinhos. Mas o fato é que ele havia pedido uma pizza e ainda tinha um pedaço. Queria saber se por acaso ela não queria comer, ainda estava quente. E Nicole jantou, e no outro dia era sábado.