Eis que o famigerado lockdown chegou aqui onde eu moro, mas ainda é um de mentirinha, um lockdown no domingo, que sequer precisaria ter sido decretado acaso não tivéssemos deixado de seguir os mandamentos do Senhor. Tem a mesma eficácia do toque de recolher de madrugada. Nesse domingo em que escrevo, ninguém ainda me impediria de sair de casa, e devo confessar que saí mesmo, mas só até o outro lado da cerca, para juntar alguns pinhões. No mais, sigo em casa, sentindo uma bruta saudade do tempo que era esmagado no transporte coletivo.
A prefeitura emite uma ou outra medida para tentar conter o avanço do vírus, ou, ao menos, para dar a impressão de que está tentando. Sempre que alguém invoca a questão dos ônibus, ela sai pela tangente, diz que não é responsável, que já solicitou as melhorias ao consórcio que tudo organiza. Como resultado, inexplicáveis festinhas de 10 pessoas são interrompidas por aí, mas nada se pode fazer sobre 200 pessoas espremidas a cada novo ônibus que sai do terminal – e esperar pelo próximo também é ficar espremido, só que na própria parada de ônibus.
Ah, que tempos, que tempos. Os decretos da prefeitura, se nada dizem sobre as aglomerações do transporte público, expressam, com todas as letras, a curiosa proibição de se empinar pipa. Sim, onde eu moro, uma das estratégias para se conter o avanço do vírus é não soltar pipa. E é compreensível, pois, aqui, as pipas podem gerar grandes aglomerações. O que eu vejo, contudo, ainda é um pouco de poesia.
Onde eu moro, uma das estratégias para se conter o avanço do vírus é não soltar pipa. E é compreensível, pois, aqui, as pipas podem gerar grandes aglomerações. O que eu vejo, contudo, ainda é um pouco de poesia.
Em 2015, em uma crônica, eu manifestei a minha admiração pelo fato de que, ainda naquela época, existia gente soltando pipa na cidade. Quis deixar registrado para a posteridade que, em 2015, no meio de todas as tecnologias que nos cercavam, aquela ainda era uma brincadeira bem popular. Já se passaram cinco anos e não há sinais de que as pipas tenham perdido algum prestígio na região. Ainda se vê, nos finais de semana, ruas inteiras com pessoas empinando pipa. Com a quarentena, aconteceu que mais pessoas ficaram em casa, mas não exatamente dentro de casa – foram para fora soltar pipa e, com o afrouxamento do isolamento (pois os shoppings não foram liberados também?), uma multidão cada vez maior estava se aglomerando nas ruas. No ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2020, portanto, as pipas continuam de vento em popa.
Tive também as minhas experiências com as pipas. Lá onde eu vivia, chamavam-se “bandorgas”, uma variação do gauchês “pandorga”. Meu pai fez duas ou três dessas para mim e íamos empinar nos terrenos baldios da vizinhança (naquele tempo ainda havia terrenos baldios). Eu era pequeno e não me lembro exatamente das sensações que tive ao deixar a bandorga subir, subir e subir cada vez mais. O que mais me marcou nessas experiências foi uma dor, a dor de perder essas bandorgas – perdemos todas, a linha sempre arrebentava em algum momento. E era muito dolorido pensar que aquela pipa que meu pai havia feito com tanto cuidado pela manhã havia se partido para sempre e nunca mais a veríamos – acho que foi nessa época que intuí o que era a morte.
Hoje em dia há muitos adultos empinando pipa, e as pessoas tendem a falar delas com desprezo, usando expressões como “um monte de marmanjo”, mas acho que esses adultos estão certos, se o que fazem é uma coisa típica de criança, se eles ainda são capazes de cultivar um pouco desse espírito infantil.
É claro, o cerol não pode ser admitido. É preciso que essa seja uma prática segura para todos. Há muitas atividades por aí que já estão voltando à normalidade com a adoção medidas de segurança (até o futebol está para voltar!). Quem sabe a pipa também pudesse ser admitida, desde que respeitados certos protocolos. Nunca se sabe, afinal, o que pode ser considerado essencial à vida das pessoas.