E se todo mundo tivesse rabo? A dúvida metafísica devia me atormentar no alto dos meus oito anos, pois foi precisamente um livro com este título o primeiro que eu emprestei na biblioteca da escola, talvez o primeiro que li na vida. É possível que a resposta não tenha me agradado muito, pois dois dias depois eu estava de volta à biblioteca para emprestar outro livro, e nos últimos vinte anos eu não tenho feito outra coisa, quem sabe ainda na busca de uma explicação melhor para aquela pergunta fundamental. O fato é que os livros entraram na minha vida, de tal forma que já não é possível suportar a realidade se eu não estiver lendo pelo menos um deles, e muitas vezes vários.
A coisa vem de família, pois minha mãe sofre do mesmíssimo mal e não dá mostras de que irá se curar tão cedo. É até possível que ela tenha se aproveitado do fato de me dar à luz para me transmitir, via DNA, o gene do suspense, gênero este que alimentou algumas das minhas leituras mais remotas. De fato, ainda criança, eu conheci uma coleção chamada “Salve-se Quem Puder”, que consistia em histórias de detetive em que o leitor não podia virar a página antes de resolver um enigma qualquer. A partir daí, eu alcancei os livros de mistério da Stella Carr, a grande Stella Carr, que uns dizem que já morreu, mas ninguém sabe dos detalhes, sendo mais provável que ela tenha se transformado em um dos seus próprios livros.
O fato é que os livros entraram na minha vida, de tal forma que já não é possível suportar a realidade se eu não estiver lendo pelo menos um deles, e muitas vezes vários.
Veio então a fase de Sherlock Holmes, o detetive que adivinhava a vida pregressa de seus clientes tão logo eles entrassem em seu escritório. Invejava sua capacidade de análise, seu método objetivo, suas conclusões lógicas, e é de se pensar se não foi sob a sua influência que comecei a investigar o passado da família. Minha mãe prefere a Agatha Christie, tem toda a coleção da Agatha Christie, e nesse ponto nós discordamos frontalmente, o que prova que não transmitiu a mim todo o seu material genético.
Aos 16 anos, descobri Dom Quixote. Esse eu levei três meses para ler, mas gostei tanto que achei que já podia ler alta literatura. Li então Dom Casmurro, mas eu devia ter avisado os meus tios dessa preferência, já que naquele Natal eles me deram um Harry Potter, que nunca cheguei a ler. Naqueles meses, li todo o Machado, eu e minha mãe, que emprestava na biblioteca, mas eu lia sem ter cabeça para isso, e agora já preciso ler tudo de novo.
Um dia minha mãe trouxe um livro chamado A borboleta amarela. Ah, o choque, o pasmo, o encanto de se ler Rubem Braga pela primeira vez! Ali eu decidi que queria ser Rubem Braga quando crescesse. Uma coisa puxa a outra e eu fui descobrindo outros cronistas, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos… Enchi minha casa de livros de crônicas, e foi aí que me vinguei da minha mãe, pois fiz ela gostar de todos esses caras também.
Apenas recentemente é que eu cheguei a Dostoievski, Tolstoi, Victor Hugo. Ainda não li os gregos, não li James Joyce, li pouco Shakespeare, quase nada de poesia. Estou lendo muitas mulheres, Jane Austen, as irmãs Brontë. Preciso ler mais filosofia. Já li Santo Agostinho. Nunca terminei a Bíblia. Ando lendo sobre cosmologia. Quero ler mais livros técnicos.
Tenho, enfim, muito que fazer nesta vida.