Em agosto de 2019, a escritora, roteirista e atriz Fernanda Young morreu em um pequeno hospital no município de Paraisópolis, no interior de Minas Gerais, após uma crise aguda de asma. Sete meses mais tarde, quando ocorreram os primeiros óbitos decorrentes da pandemia de Covid-19, o Brasil também começou a ficar sem ar em vários sentidos, não apenas no literal.
De certa forma, Fernanda, sem ter noção da crise sanitária mundial que estava prestes a acontecer, antecipou-se e não viveu para testemunhar a tragédia que se instalaria em seu país, o sufocando. A escritora deixou no vácuo de sua partida prematura seu marido, o também roteirista Alexandre Machado, três filhas, um filho e uma legião de fãs de sua obra polêmica, que sempre dividiu a crítica.
Entre esses admiradores estava a atriz e escritora carioca Maria Ribeiro, que se preparava para montar uma versão teatral de Pós-F.: Para Além do Masculino e do Feminino (2018), primeiro livro de não-ficção de Fernanda, uma reunião de textos autobiográficos que lhe daria, postumamente, três meses depois de sua morte, o Prêmio Jabuti na categoria Crônica.
Ao ler a coletânea, Maria enviou uma mensagem à autora falando de sua proposta de adaptar a obra para o palco, sob a direção de Mika Lins. Fernanda deu-lhe suas bençãos, mas pouco tempo depois fez uma contraproposta: queria participar da peça como atriz, fazendo o papel de si mesma. Maria viveria outra Fernanda Young, uma espécie de antítese (ou avesso). Não houve tempo para que o projeto se concretizasse.
No último sábado, em Curitiba, no palco do Auditório Salvador de Ferrante, o Guairinha, Pós-F. finalmente fez sua estreia diante de uma plateia – o espetáculo já havia sido apresentado virtualmente, on-line, durante a pandemia, mas ainda não havia ficado frente a frente com o público.
Maria Ribeiro estava só em cena. Percebia-se seu nervosismo em alguns momentos, o que é, penso eu, absolutamente natural em uma noite de estreia. Entre as suas falas, disse, mais de uma vez, sobre a emoção de estar diante dos espectadores de máscaras que haviam vindo ao teatro para assisti-la.
Antes que as cortinas se abrissem, ouviu-se no teatro, na íntegra, “Borderline”, hit do primeiro álbum de Madonna, de quem Fernanda, nascida em 1970 na cidade fluminense de Niterói, era fã. Ao ponto de batizar uma de suas filhas de Cecília Madonna.
A canção, que embalou uma história de amor que eu vivi no fim da adolescência, me deixou arrepiado. Entendi porque ela que estava lá. O que eu não esperava é que praticamente toda a trilha sonora do espetáculo fosse composta de músicas que povoaram meu imaginário ao longo da vida: “Space Oddity” (de David Bowie), “Olhos nos Olhos” (de Chico Buarque, na voz de Maria Ribeiro), “Vaca Profana” (de Caetano Veloso, em gravação de Gal Costa), “Creep” (da banda Radiohead), “99 Luftbaloons” (da cantora alemã Nena). Fernanda, afinal, era cinco anos mais nova do que eu. Somos, portanto, da mesma geração, o que explica essa intensa afinidade musical.
Pós-F é um espetáculo feminista, como Maria fez questão de frisar em um momento no qual conversa com a plateia sobre o orgasmo da mulher, num proposital tom de provocação aos homens presentes. A peça fala muito de gênero e de sexualidade. A atriz chega a interromper o texto para dizer que discorda da autora, que num dos textos do livro defendia que antes de fazer cirurgias de redesignação, transexuais deveriam vivenciar a realidade de seu corpo biológico. “Discordo dela. Acho que muitas pessoas nascem mesmo em um corpo que não corresponde ao seu gênero. Tenho certeza de que ela já teria mudado de ideia em relação a esse assunto.”
A peça também fala muito sobre escrever, criar, ser aceita como artista e criadora, enfrentar o conservadorismo e a resistência em se aceitar uma mulher com opiniões fortes. Foi inevitável nesse momento, para mim, lembrar de meu único encontro com Fernanda Young, nos anos 2000, durante uma edição do “Café Literário”, evento promovido pelo jornal Gazeta do Povo em diferentes bares e restaurantes de Curitiba.
Nesses encontros, eu entrevistava personalidades, como escritores, cineastas e compositores, para falar de suas obras, dos seus processos criativos, de cultura e arte. De todos os que entrevistei, a conversa mais desafiadora foi com Fernanda Young, em um palco improvisado no restaurante Beto Batata, no então recém-inaugurado Park Shopping Barigui.
Ao apresentar ‘Pós-F’, a peça, eu disse que Maria Ribeiro estava sozinha no palco do Guairinha no último sábado. Me equivoquei. Fernanda Young estava com ela quase o tempo todo.
Por ter sido vítima de preconceito por parte da imprensa cultural brasileira, especialmente da literária, que resistia a reconhecer os talentos de escritora da autora dos roteiros de Os Normais (em parceria com o marido), entre outros sucessos, Fernanda parecia estar sempre na defensiva. Dona de uma inteligência notável, muito rápida, e de uma capacidade incrível de verbalizar suas opiniões de forma contundente, ela se apropriava de minhas perguntas, para transformá-las em pontes de comunicação não exatamente comigo, que a entrevistava, mas com o público, o interlocutor que realmente lhe interessava. Ela mal me olhava: seu foco eram as pessoas, “Sua Majestade, o outro”, termo que ela usa em Pós-F para designar o diferente. Eu a entendo hoje muito melhor.
Por isso mesmo que eu gostaria de me corrigir. Ao apresentar Pós-F, a peça, eu disse que Maria Ribeiro estava sozinha no palco do Guairinha no último sábado. Me equivoquei. Fernanda Young estava com ela quase o tempo todo. Eu a “vi” não apenas em grande parte das palavras, que eram suas, mas na linguagem corporal, nas inflexões da voz e até mesmo no olhar da atriz que, ao mesmo tempo, a representava e com ela dialogava no espetáculo. Maria não a imita, mas a compreende em toda a sua complexidade e suas contradições.
Percebi, por meio dela, no último sábado, o quanto Fernanda Young faz falta nesse Brasil tão sufocado onde hoje vivemos.