Uma quadra e 163 passos, mais ou menos apressados dependendo do dia, separam a maternidade onde nasci e meu local de trabalho há 16 anos. De acordo com alguns critérios de julgamento mais apressados, não fui muito longe na vida. Mas entre a Rua Lourenço Pinto, na qual está instalada há décadas a Casa de Saúde Paciornik, e a Pedro Ivo, endereço da redação da Gazeta do Povo, existe uma história que não segue em linha reta, e não me cabe aqui contá-la, como o David Copperfield de Charles Dickens. Meu assunto hoje, embora invariavelmente passe por mim e por algumas de minhas lembranças, é outro. Quero falar sobre pertencimento.
Quando eu era muito jovem, tudo com que sonhava era ganhar o mundo. Zarpar, “dar o pira”, com se dizia na época. Fiz isso com 17 anos e fui passar um ano estudando nos Estados Unidos, em uma cidadezinha de 11 mil habitantes chamada Carthage (Cartago), no Missouri, coração agrícola do país. Lembro de ter dito, ao longo daqueles meses de “exílio” nas planícies do Meio-Oeste, que o ônus de ter partido por tanto tempo e tão cedo era que, a partir daquele momento, sempre estaria longe de algum lugar – e de pessoas de quem eu aprendera a gostar muito. Não me dei conta que isso já tinha me acontecido antes.
Havia morado, durante a infância e a primeira adolescência, por mais ou menos uma década, no Rio de Janeiro. E, ao mudar de volta para Curitiba, comecei a descobrir na marra, como cabe a um garoto de quase 14 anos que vivencia uma série de experiências e mudanças drásticas pela primeira vez, que distâncias se medem, mais do que em quilômetros ou milhas, em histórias vividas, pessoas significativas que cruzam nosso caminho, e na saudade – de personagens ou enredos compartilhados – que sentimos quando olhamos no retrovisor.
Somos o lugar onde vivemos, mas essas cidades que nos habitam também carregam muito de nós. E, mesmo quando trocamos as colchas, mudamos de endereço, as demais cobertas vão conosco na bagagem, dobradas, por vezes até esquecidas no fundo do baú, mas estão sempre lá, fazendo parte de nossa vida.
E, em meio a essa existência, sempre existem cidades. Pequena ou grande, uma cidade, mais do que um conjunto de ruas, avenidas, viadutos, túneis e edificações, é o cruzamento, por vezes perigoso ou confuso, das trajetórias de vida de seus habitantes, dos vários caminhos, físicos e emocionais, que percorremos no dia a dia. Esses percursos vão costurando ao longo do tempo uma imensa colcha de pertencimento, que nos protege e nos define, e por vezes podem até nos sufocar quando nelas nos enrolamos demais, ou quando permitimos que elas nos limitem os movimentos.
Somos o lugar onde vivemos, mas essas cidades que nos habitam também carregam muito de nós. E, mesmo quando trocamos as colchas, mudamos de endereço, as demais cobertas vão conosco na bagagem, dobradas, por vezes até esquecidas no fundo do baú, mas estão sempre lá, fazendo parte de nossa vida.
Curitiba, Carthage, Cleveland, Miami, São Paulo, Rio de Janeiro. Lugares muito diferentes onde morei por mais ou menos tempo, meses ou anos, mas que são colchas feitas a partir de retalhos de mim, de histórias que vivi, dores, amores, amizades, confrontos, alegrias e decepções que se entrelaçam como fios de um um único conjunto, ao ponto de não saber onde um termina para o outro começar.
Assim, quando vejo a foto, ou a cena de um filme, em que surge um lugar por onde trilharam meus passos – mais ou menos de 163 –, eu me sinto um pouco dono e um pouco propriedade daquela geografia. Enxergo vestígios de mim na histórica (e também decisiva no desenlace da biografia de Getúlio Vargas) Rua Tonelero, onde ficava meu colégio no Rio, nas palmeiras que bailam ao vento por vezes forte da Flórida, no trânsito congestionado e eletrificado da Avenida Paulista, no calçadão de vais e vens da Rua XV, aqui em Curitiba. E, sobretudo, nessa quadra que percorro quase todos dias e que separam o local de meu parto do teclado no qual digito este texto. Pertenço a tudo isso.