O complexo de Cassandra, na psicologia e na psicanálise, se dá quando várias previsões, profecias e insights são tomados como falsos e, portanto, desacreditados com veemência. A protagonista da série Manhãs de Setembro, em cartaz no canal de streaming Amazon Prime, é uma mulher trans, preta e periférica, que não apenas luta por seu lugar no mundo: ela deseja ser respeitada pelo que é, pela indentidade de gênero que abraçou. Muitos não acreditam nela.
Vivida com bravura e extrema autenticidade pela cantora e atriz Liniker, Cassandra ganha a vida como motogirl na cidade de São Paulo, e, à noite, se realiza, ganhando uns trocados a mais, se apresentando em uma boate LGBTQI+, emblematicamente chamada Metamorphose. Sempre que pode, incorpora a seu repertório sucessos da carreira de sua ídola maior, Vanusa – o que explica o título da série, “Manhãs de Setembro”, um dos maiores hits radiofônicos da intérprete paulista, que morreu em novembro do ano passado.
A protagonista da série Manhãs de Setembro, em cartaz no canal de streaming Amazon Prime,é uma mulher trans, preta e periférica, que não apenas luta por seu lugar no mundo: ela deseja ser respeitada pelo que é, pela indentidade de gênero que abraçou.
A trama da série tem início quando Cassandra vive um momento importante em sua vida. Acaba de alugar uma quitinete só para ela, onde pretende viver com mais privacidade. Há quase um ano vive uma história de amor com o garçom Ivaldo (Thomas Aquino), um homem casado e com filhos que leva uma vida dupla.
A rotina de Cassandra sofre uma reviravolta quando é procurada por Leide (a excelente Karine Telles, de Benzinho), uma mulher com quem teve um brevíssimo caso no passado, que gerou um filho, o garoto Gersinho (Gustavo Coelho), que sonha conhecer o pai biológico.
A perplexidade de descobrir a paternidade quando já vive como mulher desnorteia Cassandra. Sua primeira reação é a de rejeitar Gersinho, mas a doçura e a carência do menino, somadas à penúria da destrambelhada Leide, fazem com que ela se veja diante de um dilema complexo: proteger o filho ou perder sua liberdade, abrir ou não espaço para o afeto que surge entre os dois?
Embora Manhãs de Setembro se passe na capital paulista, parte substancial das cenas foram gravadas em Montevidéu, no Uruguai, locação perfeita para abrigar a atmosfera sombria, algo sórdida, da trama.
Sob a direção sensível de Luis Pinheiro (de Mulheres Alteradas) e Dainara Toffoli (de As Five), e um roteiro muito bem alinhavado, a série narra uma história profundamente humana do universo LGBTQI+ sem cair no exotismo ou na caricatura. Os personagens coadjuvantes são incríveis, como o adorável casal gay formado Gero Camilo e Paulo Miklos, ambos excelentes, sutis em seus papéis.
Liniker é uma estrela. Ela constrói uma personagem multifacetada, repleta de nuances, entre a melancolia e um heroísmo possível, como a protagonista do premiado filme chileno Uma Mulher Fantástica.
Desde já, Manhãs de Setembro já uma das melhores produções de 2021.
