Chico Buarque deve ter escrito Essa Gente, seu mais recente livro, lançado no fim de 2019, com pressa. Percebe-se a urgência em cada página, no ritmo acelerado com que a narrativa se constrói em capítulos curtos, repletos de informações por vezes despejadas de forma caótica, como em um diário. É diferente, nesse aspecto, dos seus romances anteriores, como os premiados Budapeste e Leite Derramado: faltam à nova obra, na listas dos mais vendidos há meses, o cuidado redobrado com cada frase, a escolha calculada das palavras, o esmero cirúrgico. A jornada abissal de seu protagonista, Manoel Duarte, um escritor carioca em crise existencial e criativa, é narrada de forma visceral, com um certo desespero áspero, como se o que temos nas mãos fosse um rascunho e não a versão final da obra. Defendo a ideia de que essa crueza seja proposital.
Aos 75 anos, talvez Chico não tenha tantos livros e discos dentro de si, embora a regularidade com que produz desminta em certa medida essa suspeita. Essa Gente não me parece o resultado de um longo processo criativo, ponderado. Nem poderia. Há na escrita um certo desespero de quem corre contra o relógio e precisa, necessita, despejar suas palavras no mundo. Porque fala de um Brasil em tempo real. É aqui e agora, e por isso arranha e perturba.
Duarte compartilha com outros protagonistas de Chico a infelicidade, a angústia, a dolorosa relação com a existência. É um escritor fraturado, manco em vários sentidos. Esse mal-estar está na incapacidade de produzir um livro à altura de suas obras do passado, mas também em seus vínculos afetivos desde sempre derrotados. Tem um filho adolescente com quem não consegue conversar, transita entre duas ex-mulheres que ele tratou mal e com quem viveu relações naufragadas. Ao seu redor, um Rio de Janeiro que também despenca ladeira abaixo.
Essa Gente não me parece o resultado de um longo processo criativo, ponderado. Nem poderia. Há na escrita um certo desespero de quem corre contra o relógio e precisa, necessita, despejar suas palavras no mundo.
Aqui, na relação de Duarte com um país esfacelado, em uma cidade dominada por milícias, pastores evangélicos corruptos e uma elite cruel, fascista e indiferente a dor das minorias, dos pobres e desvalidos, Duarte tenta, sem muito sucesso, manter a cabeça fora d’água. Sua vida é uma farsa, cercada por ruínas sociais. Nada que escreve, portanto, floresce mais. Sua alma secou e o romance de Chico, por vezes tragicômico, fala sobre o salto de Duarte no precipício e essa gente a que o autor se refere no título é, ao mesmo tempo esse “outro” que deploramos e rejeitamos, mas, no fundo, quem somos como nação.