Há livros que nos fundam. Nunca voltamos a ser os mesmos ao regressar de suas páginas. Demian, publicado pelo escritor alemão Hermann Hesse em 1919, é uma dessas obras. Caiu em minhas mãos no fim da adolescência e até hoje me recordo da estranha sensação de, ao interromper sua leitura, parecer emergir de um mergulho profundo, ou despertar de um sonho contra a minha vontade.
Mas como um livro pode nos fundar? A resposta a essa pergunta tem muito a ver com a obra em si, com o que ela tem a dizer, porém também está relacionada com onde se está quando a lemos, o estado de alma em que nos encontramos. Por ter quase a mesma idade de Emil Sinclair, o protagonista narrador de Demian, houve identificação quase imediata com o personagem, que busca encontrar, mais do que um lugar no mundo, um sentido para a própria existência em uma Europa fantasmagórica, com cheiro de pólvora.
Há livros que nos fundam. Nunca voltamos a ser os mesmos ao regressar de suas páginas. Demian, publicado pelo escritor alemão Hermann Hesse em 1919, é uma dessas obras.
Sensível e introspectivo, Sinclair cresce em um ambiente familiar amoroso, superprotetor, que o mantém longe das inevitáveis dores do mundo. Mas, ao perceber que essa estabilidade, e as certezas por ela proporcionadas, são uma espécie de paraíso artificial, Sinclair sente a necessidade de romper essa bolha de proteção e acaba se confrontando com uma realidade fria e sombria. O choque entre essas duas instâncias faz com que ele se refugie em si mesmo, à procura de respostas, mas também de esconderijo.
Tudo muda quando Sinclair conhece Max Demian, um colega de classe que, ao contrário dele, não se esconde. É precoce, mundano. Dono de um espírito livre, Demian puxa Sinclair para fora da redoma onde vive, e lhe apresenta a vastidão de uma existência de múltiplas possibilidades, nas qual o bem e o mal não são antagônicos, mas faces de uma mesma moeda, que gira incessantemente podendo por vezes cair de um lado, mas também do outro. Ele lhe mostra que a imperfeição não só é humana: somos todos filhos de Caim, sempre entre o pecado e a virtude.
De forte teor psicanalítico, Demian, é, por excelência, um romance de formação sobre um jovem que toma consciência da fragilidade da moral, da família e do Estado, e tateia seu caminho do niilismo nietzschiano, que tudo nega e nada acredita, ao misticismo. O amigo de Sinclair apresenta a ele uma divindade chamada Abraxas, ao mesmo tempo transcendente e profundamente humana, por trazer em sua essência o bem e o mal.
Como o protagonista, eu, aos 15, 16 anos, também encontrei Demian, ou desejei encontrá-lo, ao ler o romance de Hesse. De certa forma, a leitura do livro, uma obra tão distante no tempo do garoto que eu era nos anos 1980, legitimou minhas inquietações, minha ânsia por ruptura. Por isso, me elevou e fundou, como só a grande literatura é capaz.