1971. O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista havia entrado no túnel do tempo e retornado aos derradeiros suspiros do Brasil Colônia. O imponente prédio, de arquitetura inspirada no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, tinha se tornado naqueles dias cenário do longa-metragem Independência ou Morte, superprodução ufanista dirigida por Carlos Coimbra, feita sob encomenda para ser lançada a tempo das comemorações do Sesquicentenário da Independência do país, em 1972. Eu era um menino nascido 11 meses após o Golpe Militar, de 1964, e me senti imerso num livro de história na minha primeira visita ao prédio.
A lembrança mais vívida que guardo daquele meu dia no set de filmagens foi um inusitado encontro, na escadaria do palácio, com d. Pedro I, sob a pele de um Tarcísio Meira que me pareceu ter uns três metros de altura. Trajava uniforme militar, repleto de medalhas, botas de montaria lustrosas e ostentava garbosas costeletas suiças que tornavam o cobiçado galã das telenovelas mais parecido com o filho de d. João VI. Confesso que fiquei confuso ao me deparar com o astro transfigurado em imperador: sabia que tratava-se de uma filmagem, mas a suntuosidade do edifício, preparado para ser o mais parecido possível com a residência dos Bragança no início do século 19, me fez acreditar, por alguns instantes, estar frente a frente com o monarca português. Congelei até que ele passasse por mim, e colasse para sempre na minha memória. De alguma forma, eu tinha, sim, conhecido d. Pedro I.
Eu não sabia, mas voltaria ao Museu Nacional algumas vezes ao longo da vida – não tantas quanto gostaria hoje, dois dias depois do incêndio que consumiu em algumas horas 200 anos de nossa história, e trazendo à tona um bocado da minha em um turbilhão de lembranças. Cursei o ensino fundamental no Rio de Janeiro em três escolas. A primeira delas, chamada Colégio Brasileiro de São Cristóvão, ficava muito perto do museu, no mesmo bairro de colonização portuguesa onde se encontra a bela Quinta da Boa Vista.
Por ser o mais antigo museu brasileiro, e possuir um extraordinário acervo de história natural, antropologia e arqueologia, com 20 milhões de ítens, sem falar de um zoológico em seus domínios, os colégios do Rio, ao menos uma vez por ano, senão duas, costumavam levar seus alunos para visitas à Quinta. Crianças amam ossadas de dinossauros, de baleias, múmias egípcias, insetos de todos os tamanhos e outras criaturas que dividiam espaço com a História do Brasil, tão viva entre aquelas paredes imponentes. Também me recordo das muitas escadas, corrimões, da sensação de estar em um mundo à parte. Um espaço para o saber, mas também para a aventura, quando visto através dos olhos de um menino que crescia aprendendo a compreender um pouco do muito que aquilo tudo significava.
Retornei ao Museu Nacional, depois de adulto, muito mais tarde, no início dos anos 2000, quando já trabalhava como jornalista. Mas não voltei a trabalho. Fui movido pela nostalgia, pela vontade de revisitar aqueles momentos deixados no passado. Frustrei-me. As instalações estavam combalidas, mal cuidadas, encardidas pelo tempo. Percebia-se o empenho de quem ali trabalhava, mas havia algo fantasmagórico no prédio e em suas salas de exposição. O acervo, ainda que extraordinário, clamava por mais cuidado, com as informações que o descreviam improvisadas em cartolinas amareladas. As salas eram mal iluminadas, com certo cheiro de bolor, e as paredes, quando não estavam manchadas pela umidade, tinham a pintura desbotada. Tudo ali gritava abandono, descaso. Saí de lá melancólico ao pensar que tinha estado em um lugar tão essencial para a História do Brasil e, ao mesmo tempo, negligenciado.
Retornei ao Museu Nacional, depois de adulto, muito mais tarde, no início dos anos 2000, quando já trabalhava como jornalista. Mas não voltei a trabalho. Fui movido pela nostalgia, pela vontade de revisitar aqueles momentos deixados no passado. Frustrei-me. As instalações estavam combalidas, mal cuidadas, encardidas pelo tempo. Percebia-se o empenho de quem ali trabalhava, mas havia algo fantasmagórico no prédio e em suas salas de exposição.
Minha última visita à Quinta da Boa Vista foi há pouco mais de dez anos, quando se faziam os preparativos para a celebração dos 200 anos da vinda da família real portuguesa ao Brasil. Desta vez fui a serviço e o museu estava fechado para visitação. A imprensa foi recebida em um restaurante que funcionava dentro da Quinta da Boa Vista, mas num prédio fora do palácio. Eu o vi, imponente como sempre, de fora. Aproveitei para olhar as estátuas de d. Pedro II, o retratando como um homem maduro, e de sua mãe, a imperatriz Leopoldina, com o futuro imperador e a irmã Maria da Glória (mais tarde rainha de Portugal), ainda crianças, no braços. Mais de 35 anos tinham se passado desde aquele dia das filmagens de Independência ou Morte. Eu estava, de certa forma, revisitando uma história de pertencimento tão minha quanto do país.
No domingo passado, ao ver na tevê o Museu Nacional em chamas, me senti órfão, roubado de minha identidade por um Estado que despreza a cultura e a memória, com frequência as deixando à deriva. Perdemos nas chamas do descaso, da incompetência de sucessivos desgovernos, muitas de nossas impressões digitais, que ali estavam guardadas, mesmo que de certa forma desprotegidas. Ficamos ainda mais frágeis como nação há dois dias.