No início deste mês, passamos, meu companheiro e eu, cinco dias intensos em Copenhague, capital da Dinamarca. Há muitos anos sonhava em conhecer a cidade por vários motivos, não exatamente concretos, que vão da minha admiração pelo cinema e pela literatura produzidos na terra de Lars Von Trier e Karen Blixen à curiosidade de saber como é, afinal, a vida no país do povo conhecido como o “o mais feliz do mundo”.
Devo confessar que, como jornalista, sempre desconfiei dessas pesquisas que apontam índices de felicidade. Como é possível quantificar, ou medir, um sentimento tão etéreo e pessoal? Qual foi a metodologia empregada nesse estudo, que o tornam confiável? Ainda assim, relatos de pessoas que lá estiveram ou viveram, e o contato, ainda que breve, com alguns nativos do país que cruzaram meu caminho ao longo da vida, me intrigavam, justamente por confirmar que poderia, enfim, haver algo de mágico, especial, no reino da Dinamarca.
Após uma longa jornada de trem iniciada em Berlim no fim da manhã, desembarquei em Copenhague ao anoitecer. No inverno, o sol se põe muito cedo nos países nórdicos, pouco depois das 16 horas. Portanto, já estava bem escuro quando entrei no táxi que nos levou da estação central até o hotel. O motorista, um albanês conversador, radicado há três décadas na cidade, disse que não precisávamos nos preocupar com violência de qualquer espécie: “Aqui não é como o Rio de Janeiro ou Tirana, capital do meu país. Ninguém vai assaltar vocês em Copenhague”.
De novo, meu pisca-alerta, que me defende de certezas absolutas e generalizantes se acendeu, especialmente quando o homem começou a xingar os inúmeros ciclistas que atravessavam o seu caminho. “Essa gente aqui pode tudo e só atrapalha”, reclamou ele. Preferi não argumentar.
De fato, fui descobrir mais tarde, o transporte sobre duas rodas domina Copenhague, toda entrecortada por ciclovias. Mesmo com o frio invernal, que oscilava entre menos 3 e 7 graus celsius, as bikes são onipresentes, conduzidas por crianças, adultos e idosos, homens e mulheres. A cidade parece se orgulhar disso, ao contrário do albanês, cujo ofício talvez não seja mais tão útil num lugar que promete eliminar o uso de combustível fóssil até 2025 e onde quase não se veem carros de luxo das grandes marcas.
Após uma semana em Berlim, a efervescente e super cosmopolita capital da Alemanha, onde eficiência nem sempre é sinônimo de gentileza, Copenhague nos levou em outra direção. Ainda que seja uma cidade relativamente grande, as distâncias tornaram-se muito menores. Com menos automóveis nas ruas, é, também, bem menos ruidosa. Ouvem-se mais as vozes das pessoas e os sons da natureza, como o guincho das gaivotas (afinal, é uma ilha) e o vento nos galhos da árvores peladas pelo inverno, além, é claro, das rodas das bicicletas. Mais do que isso tudo, nos chamou muito a atenção a disponibilidade e a simpatia dos locais.
Tenho plena consciência de que foram apenas cinco dias, muito pouco tempo para ir além de impressões, porém sensações não devem ser menosprezadas por serem mais circunstanciais e transitórias. Não seria justo com nossa experiência de viajantes desprezá-las.
Lembro-me de uma manhã especialmente fria, marcada por uma chuva que parecia querer tornar-se neve, quando decidimos lavar a roupa acumulada em dez dias fora de casa. Não muito distante do hotel, havia uma lavanderia pública, sem funcionários, onde, em troca de algumas dezenas de coroas dinamarquesas (sete delas compram um euro), poderíamos lavar e secar tudo que levamos em sacolas plásticas. O problema é que as instruções de como usar as máquinas estavam todas no idioma local – mais tarde nos demos conta de que havia textos em inglês, grafados em letras mais miúdas ao lado.
Em questão de minutos, contudo, um cliente, que após breves apresentações descobrimos ser um professor civil de História e Ciências Políticas da Escola do Exército dinamarquês, já havia se voluntariado não apenas para explicar como funcionava a lavanderia, mas também nos cedeu sabão líquido, além de nos oferecer moedas, caso precisássemos, o que não era, felizmente, o caso.
Em seguida, após deixar as suas próprias roupas na máquina, o professor pediu licença e foi para casa, segundo ele, para corrigir trabalhos de seus alunos. Pouco depois, uma mulher pediu desculpas por se intrometer, e nos deu dicas quanto à temperatura e o tempo de secagem mais adequado para o que tínhamos levado, além de nos dar dicas de museus (todos fechados por causa da pandemia) e de galerias de arte que poderíamos visitar durante nossa estada.
Esse combo de simpatia, gentileza e hospitalidade, aparentemente espontâneo, desinteressado, se repetiu muitas vezes ao longo de nossos dias na capital dinamarquesa. Nos bares, não raro, éramos surpreendidos por rodadas de shots (pequenas doses de bebidas alcoólicas), oferecidas por gente desconhecida, com quem compartilhávamos os balcões. É uma tradição local, depois nos explicaram, quando puxamos conversas com esses anfitriões inesperados.
Numa dessas conversas, deixamos escapar que estávamos, mais do que impressionados, intrigados pela forma sorridente, relaxada e sempre muito atenciosa com que éramos recebidos em quase todos os lugares. “Não é só uma impressão. Copenhague é um vilarejo de quase 700 mil habitantes, e gostamos que seja assim.”
Nesse momento fomos apresentados ao termo hygge (pronuncia-se “hu-ga”), palavra sem uma tradução precisa em nosso idioma, que, segundo eles, definiria a alma dinamarquesa. “É algo de que nos orgulhamos, e do qual não abrimos mão”, nos contou um advogado que bebia no balcão após o expediente, em companhia de amigos de longa data, em um bar cheio no centro velho de Copenhague – as noites na cidade foram abreviadas pelo governo que, em decorrência da pandemia, determinou que tudo fechasse às 23 horas.
Nesse momento fomos apresentados ao termo ‘hygge‘, palavra sem uma tradução precisa em nosso idioma, que, segundo eles, definiria a alma dinamarquesa. ‘É algo de que nos orgulhamos, e do qual não abrimos mão’, nos contou um advogado que bebia no balcão após o expediente, em companhia de amigos de longa data, em um bar cheio no centro velho de Copenhague.
“Hygge significa um conjunto coisas. É beber e estar com os amigos, é assistir a um filme com seu amor na frente da lareira em casa. É também poder conversar sobre tudo, pequenas e grandes coisas da vida: política, nossos direitos, família, viagens…”, contou o advogado.
A tal da felicidade dos dinamarqueses, digamos, institucionalizada, e talvez até um pouco autoidealizada, acabou fazendo bem mais sentido para mim. Durante alguns dias, fiquei ruminando sobre como definir, a partir de meu olhar de passagem, exótico e estrangeiro, o que seria, enfim, hygge. Para além de todo o aconchego que as explicações que ouvi poderiam sugerir, cheguei à conclusão que nele reside um forte senso compartilhado de comunidade, algo para mim, de extrema potência.
Daí me dei conta de por que, em certa medida, estava me sentindo tão bem, nessa espécie de bolha utópica. Confesso que gostei da sensação (de novo ela!) e tenho quase certeza de que um dia voltarei para experimentá-la mais uma vez.
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