Em um dos muitos panelaços dos últimos meses, ele ficou tão irritado com a xingação a seu presidente, que decidiu responder à altura. Instalou caixas de som na janela e, a todo volume, colocou o “Hino Nacional” para a vizinhança ouvir. Entre uma estrofe e outra, megafone (ele tem um!) em punho, fez o seu comício de um homem só: “Acabou a mamata!”, “Vai pra Cuba!”, “Luladrão!”, gritava a plenos pulmões. Para completar o espetáculo, estendeu uma bandeira brasileira, escancarando sua causa.
Volta e meia, nestes tempos de pandemia e quarentena infinita, esse vizinho, que tem lá seus 40 anos, também vocifera, do nada, pelo fim do serviço público. De vez em quando, alguém responde com um “Fora Bolsonaro!” ou um palavrão, mas quase sempre seu grito ecoa no vazio. Às vezes, eu o vejo mais de perto, quando saio de casa, a caminho da padaria, do supermercado, da farmácia. Ele parece adorar bonés de times gringos, fones de ouvido, tênis de marca e, pelo menos umas três ou quatro ocasiões desde março, eu o vi vestido com a camisa da Seleção Brasileira de futebol. Sim, a clássica canarinho, amarela, patriótica e orgulhosa. A última vez em que nos cruzamos foi no domingo passado. E, pela primeira vez, não o achei patético ou engraçado. Tive medo.
Com o olhar esvaziado de quem anda dormindo mal e não sabe muito bem aonde ir em um dia em que todo o comércio está fechado, meu vizinho de quadra atravessou meu caminho ao cair da tarde. Sem máscara, ele tossia e assoava o nariz com a mão direita. O catarro escorria-lhe pelos dedos, que ele primeiro esfregou num poste, enquanto esperava para atravessar a rua. Confesso que, assustado, parei para observá-lo a uma certa distância, com o rabo do olho, e percebi que terminou de limpar a mão na própria bermuda. Entre uma e outra tossida.
Com o olhar esvaziado de quem anda dormindo mal e não sabe muito bem aonde ir em um dia em que todo o comércio está fechado, meu vizinho de quadra atravessou meu caminho ao cair da tarde. Sem máscara, ele tossia e assoava o nariz com a mão direita.
Talvez seja apenas impressão ou paranoia minha, mas ele quase sempre olha com um misto de ódio e desdém os mascarados que por ele passam. Diminui o passo e nos fita nos olhos. Levando-se em conta seu comportamento nestes últimos meses, na cabeça dele devemos ser todos “viados”, como diz seu presidente, ou trouxas traidores da pátria.
Fico a imaginar se meu vizinho é casado, tem mulher e filhos, ou se é um lobo solitário. Ou ambos. Seu modus operandi deixa transparecer evidente ressentimento, ódio represado. Só o vi contente, entusiasmado, uma única vez, de longe, pela janela. Bandeira nas costas, como se fosse uma capa de super-herói, ele estava parado na calçada, em frente ao meu prédio. Empunhava uma vuvuzela verde-e-amarela enquanto passava diante dele uma carreata em protesto contra o fechamento do comércio. Interessante que ele era o único não motorizado. Parecia extasiado, em transe. O que gritava eu não consegui ouvir muito bem por causa do buzinaço, mas lembro que dava pequenos saltos, como se quisesse voar.