Desde fevereiro estou trabalhando no Centro de Curitiba. Esse compromisso diário, obrigatório, tem me reconectado com a cidade onde nasci e passei boa parte da vida, entre idas e vindas de maior ou menor duração. O interessante de estar aqui todos os dias, de segunda a sexta-feira, percorrendo mais ou menos os mesmos trajetos, é a possibilidade de perceber detalhes aparentemente desimportantes, mas capazes de me fazer repensar minha identidade a partir do espaço urbano que ocupo, e por onde transito. Percebo que não apenas estou neste lugar. Ele está em mim, na minha identidade, ainda que sempre de forma mutante, se reconfigurando em cada pequena loja, entrada de edifício ou hotel, bar, lanchonete e marquise de prédio pelos quais passo. E, principalmente, pela diversidade de pessoas que cruzam o meu caminho, de homens engravatados a pessoas em situação de rua, passando por estudantes uniformizados, senhoras bem compostas com suas golas rolês e ciclistas, alguns de capacete, outros não.
A Rua XV de Novembro, principal artéria do Centro de Curitiba, com seu calçadão visionário, feito para pés e não para rodas, é uma espécie de praia sem mar. Ainda que os shoppings, ao longo das últimas três, quatro décadas, tenham lhe roubado as salas de cinema, uma parte do público mais endinheirado, e muitos jovens da classe média, média alta, confessem nunca, ou muito poucas vezes, ter por ali estado, as quadras que separam a praça Osório da Santos Andrade, e seus arredores, sintetizam, democraticamente, muito da complexa essência de uma cidade que sempre foi muito plural. Muitos, afinal, se esquecem de que, no fim do século 19, início do 20, ouviam-se vários idiomas pelas ruas de Curitiba, além do português, o que agora volta a acontecer com uma nova leva de imigrantes e refugiados.
A Rua XV de Novembro, principal artéria do Centro de Curitiba, com seu calçadão visionário, feito para pés e não para rodas, é uma espécie de praia sem mar.
Nunca gostei muito do cair da tarde, do crepúsculo, esse momento entre o dia e a noite no qual a passagem das horas se materializa em forma de luz em transformação, da natural para artificial, denunciando o efêmero, o transitório. Alguma coisa, meio existencial acontece no meu coração. Nos últimos tempos, entretanto, como diria Chico Buarque na canção “Olhos nos Olhos”, “me pego cantando sem mais nem por quê”. Talvez porque, ao sair de mais um dia de trabalho, e deixar que meus pés me conduzam pelo coração de Curitiba, que guarda tantas das minhas histórias, tantos pedaços de mim, mas também de milhões, curitibanos de nascimento ou não, eu me sinta verdadeiramente em casa. Essa sensação de pertencimento afronta e desafia minha melancolia, em vez de alimentá-la, porque, de certa maneira, me dá a sensação de lar, de saber onde estou, sem me limitar, aprisionar. Sinto que sou daqui, e isso não tem preço.
Percebo também, que o Centro de Curitiba passa hoje por uma espécie de processo de redescoberta por novas gerações, que têm preferido a liberdade democrática das calçadas à segurança e ao conforto dos ambientes fechados, “protegidos”, quase sempre visando à manutenção não apenas de patrimônio, mas de uma noção de divisão de classes que, embora não seja de forma alguma falsa, é certamente perversa, nociva.
No coração da cidade, em seu Centro, repleto de sons contrastes, tenho a sensação de que cabem todos. E é ela que me faz voltar todos os dias.