O embaixador do Passado deixou seu posto nesta manhã. O pedido oficial de afastamento ainda não foi divulgado pelos assessores do diplomata, mas alguns rumores dão conta de que ele, fatigado por décadas de dedicação à tarefa de manter vivas as lembranças de seus compatriotas, resolveu buscar outros desafios. Menos nostálgicos e não tão solitários.
Muitos já questionavam a validade da função desse valoroso homem público, cuja memória, descrita por alguns como “prodigiosa”, se encarregava de recordar e fazer o povo do Passado pensar sobre momentos fundamentais de sua história.
Por muito tempo, coube a ele lembrá-los de seus amores, desilusões, amizades desfeitas ou esquecidas, assim como de nomes que pareciam fugir à memória de muitos. Também era pródigo em recordar datas e pequenos acontecimentos, aparentemente insignificantes, que se embaralhavam com o passar dos anos. Como hobbie, mantinha um inesgotável banco de dados sobre filmes, discos e livros, fora do catálogo mental da maioria da população, mas significativos ainda assim. Afinal, são registros do Passado.
Não fosse o embaixador, afirmam seus biógrafos, acontecimentos importantes, felizes ou controversos, e por vezes até mesmo traumáticos, teriam se diluído na poeira dos dias. E sido apagados dos arquivos voláteis do país, que tem como prática constante as tentativas de autorreinvenção, em grande parte infrutíferas.
Não fosse o embaixador, afirmam seus biógrafos, acontecimentos importantes, felizes ou controversos, e por vezes até mesmo traumáticos, teriam se diluído na poeira dos dias.
Acontece que o diplomata, que tinha cargo vitalício – algo interpretado por muitos como um abuso explícito de poder – também tinha lá seus detratores. “Ele atrasava o nosso desenvolvimento. Ao constatemente nos lembrar do que fizemos, de nossos erros e paixões mal resolvidas, acabava por criar entraves invisíveis, muito nocivos ao desenvolvimento de nossa terra. Sua renúncia é motivo de festa”, afirmou uma fonte que não quis se identificar por medo de retaliação por parte dos partidários do embaixador, que, em vão, ainda nutrem a esperança de que ele volte atrás de sua decisão.
Nessas décadas de serviço à República do Passado, sua excelência, com dedicação quase sacerdotal, procurou manter em seus registros dados valiosos para a compreensão da identidade sociocultural e emocional dos seus habitantes, muitos deles hoje vivendo no exílio, alguns saudosos e outros fazendo questão de esquecê-lo, julgando-o “um país em ruínas”.
Quando, na reconstituição de um evento importante na história da nação, escapava um detalhe, o nome de um personagem secundário ou uma situação que a maior parte dos passadistas havia esquecido, fingido não lembrar, o diplomata era acionado, e quase nunca deixava o país na mão. Estava sempre de prontidão. Ele tinha tudo ali, na ponta de língua. Para desespero daqueles que apostavam nas vantagens da amnésia, voluntária ou não, no intuito de impor seus projetos e “mudar os rumos” do Passado, como se isso fosse possível.
Assim, o embaixador tornou-se, mesmo sem querer, um sujeito perigoso. Para sua sorte, também foi nessa época que entrou em crise existencial, passando a questionar a validade de tanto apego ao que se foi. Em um sonho profético se viu caminhando descalço nas areias mornas de um lugar remoto, mas de cuja existência há fortes indícios: o Futuro, que dizem ser uma ilha – ou um continente.
Até onde se tem notícia, o diplomata já se mudou da sede da embaixada do Passado. Não quis informar a ninguém seu novo endereço, ou se pretende continuar exercendo alguma função oficial, porém com menos responsabilidades. A nossa reportagem apurou que, durante a mudança, ele teria deixado para trás não uma carta de despedida, mas um texto manuscrito sem um destinatário identificado, talvez um manifesto informal que pode explicar sua decisão de sair de cena:
“Parto porque o peso do Passado tornou-se insuportável a essa altura. Saio da história para entrar na vida, e ir em busca do Futuro, cuja possibilidade de existência é um alento. Há tanto acumulado que já não consigo dar contar das atribuições de meu cargo, até porque não sei se ele (ou mesmo eu) é mesmo relevante a essa altura. Percebo que, antes razão de deleite, hoje minhas funções se tornaram um fardo doloroso para mim. Uma ‘cauda’ longa demais que já não consigo arrastar. Quem, de fato, se interessa pelo Passado? Não encontro mais uma razão para que essa representação diplomática continue a funcionar nos moldes atuais e não tenho interesse em reinventá-la. Talvez alguém queira e possa fazê-lo. Boa sorte!”
Sem assinatura, a folha de papel com esse texto foi encontrada sobre um volume embolorado de Em Busca do Tempo Perdido, na mesa de cabeceira do embaixador.