Uma das cenas mais significativas, e emocionantes, na história do cinema brasileiro está no filme Eles Não Usam Black-tie, adaptação do texto teatral homônimo de Gianfrancesco Guarnieri, realizada pelo diretor fluminense Leon Hirszman há 40 anos.
Romana, personagem de Fernanda Montenegro, e o marido, Otávio, interpretado pelo próprio Guarnieri, sofrem o luto da perda de um grande amigo e da expulsão de casa do filho, Tião (Carlos Alberto Riccelli), por discordarem da decisão do rapaz, operário como o pai, de furar uma greve.
O momento, de uma tristeza profunda, impõe ao casal um silêncio atordoante, quebrado apenas pelo barulho do feijão que ela escolhe e joga numa bacia de alumínio. A vida, afinal, deve seguir em frente, a despeito da dor de perceber a família fraturada, de constatar que o mundo em que antes viviam talvez nunca mais volte a ser o mesmo.
Além do gigantesco trabalho dos dois atores, do quanto conseguem expressar sem uma palavra sequer, há nessa cena do longa-metragem de Hirszman, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, uma síntese do que o Brasil atravessava à época, derradeiros anos da ditadura militar: o anseio pela redemocratização, que desembocaria em 1983 no movimento Diretas Já; e, também, as greves dos metalúgicos no ABC Paulista, iniciadas em 1978, e que foram incorporadas como pano de fundo atualizado do filme. A ação original da peça se passava no fim dos anos 1950.
Quarenta anos após o lançamento da versão cinematográfica de Eles Não Usam Black-tie, rever a “cena do feijão” que o arremata tem um sabor agridoce, melancólico. Desde o fim do regime militar, nunca a democracia brasileira esteve em risco tão evidente quanto agora.
Quarenta anos após o lançamento da versão cinematográfica de Eles Não Usam Black-tie, rever a “cena do feijão” que o arremata tem um sabor agridoce, melancólico. Desde o fim do regime militar, nunca a democracia brasileira esteve em risco tão evidente quanto agora, quando uma parte significativa e desinformada da população, ainda que não seja a maioria, parece romantizar a ditadura, o autoritarismo, a arbitrariedade.
No filme um símbolo de resiliência, o feijão retornou de forma inusitada ao noticiário nos últimos dias. Indagado sobre a alta do preço do cereal, alimento essencial na mesa dos brasileiros, o presidente da República Jair Messias Bolsonaro disse que deveríamos nos preocupar em comprar fuzis, não feijão. Mais uma bravata ou uma ameaça disfarçada? Difícil responder a esta altura.
Se o país está dividido, fraturado, para mim não é difícil escolher de que lado estar. Sento-me à mesa com Romana e Otávio. Opto pelo feijão, pela resistência, pela arte.