Um dia antes de completar 23 anos, lá estava eu em Amsterdã, com pouquíssimo dinheiro no bolso, mas com um tesouro de valor inestimável na carteira: prestes a expirar, um passe de trem que me levaria a qualquer localidade da Europa Ocidental – o ano era 1988 e a Cortina de Ferro, separando os países do bloco comunista do resto do continente, continuava de pé, ainda que com os dias contados. Os dólares (o euro era um sonho distante) não iriam muito longe, talvez o suficiente para custear uma semana de noites dormidas em albergues da juventude e manter o estômago forrado. Foi então que tomei uma decisão tresloucada: iria amanhecer o dia seguinte, 27 de fevereiro, e estrear minha nova idade, em Florença, cidade que povoara meus sonhos desde os bancos escolares, quando viajava de olhos abertos nas aulas de História da Arte.
Como o mapa europeu pode bem atestar, a distância entre a Holanda e a Itália, se não chega a ser continental para os padrões de um brasileiro, é bem significativa. Embarquei no meio da tarde do dia 26, com a previsão de colocar os pés em solo florentino na manhã seguinte, em um enregelado inverno europeu.
A jornada, com direito a uma troca de trens numa congelante madrugada em Zurique, na Suíça, foi para mim uma espécie de rito de passagem. Sabia que não conseguiria pagar minha estada em Florença por mais do que um par de dias antes de iniciar meu retorno ao Brasil, mas, ainda assim, agi movido por um desejo muito profundo, que talvez desafiasse a razão.
Conto essa história resgatada do meu baú de memórias para falar de algo mais imaterial: a importância de ouvir os próprios desejos, sensações e sentimentos, e saber negociar com a racionalidade.
Ao descer do trem com a minha mochila na estação Santa Maria Novella, fazia um frio intenso, e o dia nascia em um céu de azul absoluto, mediterrâneo. Era perto das 7 horas e, para minha surpresa, nos alto-falantes do terminal, como que sob encomenda, ouvia-se “A Grande Páscoa Russa”, composição do grande compositor romântico Rimsky-Korsakov, obra que também embalara a minha infância graças a uma coleção de discos de música clássica lançada nas bancas de revistas pela Abril Cultural durante os anos 70.
Naquele instante, o universo parecia estar me desejando feliz aniversário.
Conto essa história resgatada do meu baú de memórias para falar de algo mais imaterial: a importância de ouvir os próprios desejos, sensações e sentimentos, e saber negociar com a racionalidade, que muitas vezes desempenha em nossas vidas o papel de uma rígida inspetora de escola, sempre à espreita. Para vigiar, punir, e nos manter nos trilhos, abrindo mão do que somos.
A felicidade, essa viagem me ensinou naquela já distante manhã de inverno, reside em fragmentos, nas pequenas e essenciais decisões que tomamos em nome do que verdadeiramente somos, momentos em que nos vemos em suprema comunhão com o mundo e a natureza. Pode ser tanto em meio ao extraordinário patrimônio de obras-primas do Renascimento italiano ou sob uma árvore em Curitiba, numa tarde chuvosa de outono, a sentir a vida pulsar intensa nas veias diante de uma paisagem sublime. Mas um aviso aos navegantes: é preciso parar para ouvir o que a alma tem a dizer. Florença, por ironia do destino, me ensinou a acreditar no invisível.