Todas as vezes que passo pelo Prédio Central da Universidade Federal do Paraná (UFPR), algo na imponente construção neoclássica, um dos maiores símbolos de Curitiba, chama o meu olhar, como se me convidasse para uma conversa. Entre aquelas paredes, passei seis anos fundamentais de minha vida, de 1984 a 1990. Primeiro entrei como estudante de Direito, e depois voltei como acadêmico de Jornalismo, para começar a escrever uma história que me trouxe até aqui e, principalmente, até a mim.
Eu me enxergo, quando atendo aos chamados do edifício, através dos seus imensos janelões que se abrem para a Praça Santos Andrade, mas também para a Rua Alfredo Bufren e a Travessa Presidente Faria. A primeira imagem que me vem à cabeça desses dias hoje distantes é a de um adolescente de 18 anos, cabeça raspada depois do trote, ao mesmo tempo extasiado e ansioso pelo que estava por vir. Aprendizados tantos, muitas pessoas importantes que marcariam minha história – amigos, amores, professores – e autodescobertas essenciais. Posso dizer que ali tornei-me adulto, mas, principalmente, comecei a entender o que é ser um cidadão brasileiro.
Estava há bem pouco tempo na UFPR quando participei, meio involuntariamente, da minha primeira manifestação política, em 1984, no movimento Diretas Já. Fui com o coração aos pulos da Santos Andrade até a Boca Maldita, um caminho que fazia todos os dias, mas não daquele jeito, não por aquela razão. Começava, sem ter muita noção, a ganhar consciência da realidade, a compreender os sons ao meu redor.
Todas as vezes que passo pelo Prédio Central da Universidade Federal do Paraná (UFPR), algo na imponente construção neoclássica, um dos maiores símbolos de Curitiba, chama o meu olhar, como se me convidasse para uma conversa. Entre aquelas paredes, passei seis anos fundamentais de minha vida, de 1984 a 1989.
Não muito tempo depois, em 1985, Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito após o fim da ditadura militar, morreu, nos deixando meio órfãos de uma esperança de mudança, ou ao menos assim acreditávamos. Não seria a primeira vez. A essa época, já estava em conflito comigo mesmo. Insatisfeito com a escolha que havia feito, decidi que não queria mais ser advogado. Não estava preparado para os ternos, o “juridiquês” que tomava conta das aulas e, com o coração apertado por deixar para trás uma turma muito especial, fui à luta, atrás de mim. Voltaria um pouco mais de seis meses mais tarde, ao mesmo prédio, mas a um andar e a um universo diferentes, para estudar Comunicação.
Das imagens que guardo com mais carinho desses anos, lembro de uma sessão noturna e clandestina, em sala de aula que dava de frente para a praça, com as luzes apagadas, do filme Je Vous Salue Marie, obra iconoclasta de Jean-Luc Godard, proibido pela censura em 1985 e que chegou a nós, em uma fita VHS pirata, talvez um ano mais tarde. Senti-me deliciosamente subversivo, um rebelde com causa. Nesse mesmo ano, calouro de Jornalismo, fui eleito um dos representantes do curso para ir a um congresso da União Brasileira dos Estudantes (UNE), na Federal de Goiás, em Goiânia. Quase um dia de viagem no toco duro do ônibus da universidade, com direto a injeção de vacina contra febre amarela à beira da estrada, cantorias sem fim e uma espécie de curso intensivo de política estudantil nível hard em uma semana de noites mal dormidas e vastas emoções.
Ficaram desses tempos, também, as incríveis aulas matinais de prática de texto e literatura com o professor e escritor Cristovão Tezza, que me apresentou Rubem Fonseca e sua A Grande Arte em um exemplar do romance vindo da sua biblioteca pessoal. “Querem ser jornalistas, têm de ler. Muito, o tempo todo”, repetia o mestre em classe, como um mantra. Talvez não estivesse hoje aqui, a escrever, não fosse por ele, por aquele prédio, pela educação que ali recebi.
Assim, quando passei no último sábado à noite pela Santos Andrade, e vi na sua fachada uma faixa em preto e branco com os dizeres “Em defesa da educação”, fui invadido por uma sensação profunda de gratidão, pertencimento, mas também de indignação, sem saber o que aconteceria no domingo, poucas horas mais tarde, nas mãos de filisteus, povo sem apreço pela cultura, pela arte, pela civilização, que a arrancaram em nome da barbárie, da ignorância mais profunda, da qual tanto se orgulham, empunhando mãos transformadas em armas.
Sorte que tive o impulso de fazer a imagem que hoje ilustra este texto. Para lembrar-me de onde vim, de quem eu sou.