Revisitar um filme é uma das experiências mais desafiadoras para alguém que escreve sobre cinema. Mais instigante, contudo, ainda é reler uma crítica após muito tempo. É uma espécie de confronto com o próprio olhar, que com o passar dos anos pode se transformar. E, por vezes, não é apenas a opinião que se altera: a própria obra, ao interagir com o tempo, ganha novos sentidos, outras possíveis leituras. Por isso, me propus o desafio de voltar a O Diabo Veste Prada, que há 14 anos, quando foi lançado no Brasil, não me impressionou tanto quanto eu esperava. De lá para cá, a comédia de David Frankel se tornou uma referência incontornável quando se trata de produções sobre o mundo da moda, um “clássico” popular.
Em minha resenha, publicada pela Gazeta do Povo no dia 22 de setembro de 2006, escrevi que “uma espetacular Meryl Streep, no papel da implacável editora de moda Miranda Priestly, jamais altera seu tom de voz. Talvez porque, pelo menos em sua cabeça, não seja necessário gritar se todos ao seu redor sabem que sua palavra é a primeira e a última, sem qualquer possibilidade de questionamento. Como uma monarca déspota, porém esclarecida, ela comanda absoluta e com mão de ferro a revista Runaway (algo como a Vogue na vida real), espécie de bíblia do mundo fashion”. Ufa, não alteraria uma vírgula!
Meryl, que seria indicada ao Oscar por sua atuação, é mesmo a alma do filme e, embora sua personagem, inspirada pela temida Anna Wintour, lendária editora da Vogue americana, seja em alguns momentos um pouco caricata, graças à inventividade de sua atuação, ganha nuances de humanidade, a distanciando do maniqueísmo.
Relendo minha crítica, percebo que, à época, fiquei particularmente incomodado pela protagonista do filme, a aspirante a jornalista Andrea Sachs, vivida por Anne Hathaway, então uma estrela em ascensão que, em 2013, ganharia o Oscar de melhor atriz coadjuvante pela musical Les Misérables. No meu texto, digo que a personagem “incapaz de soletrar Gabbana e cuja ignorância em termos de moda se materializa na forma equivocada como se veste, de alguma forma atrai o interesse de Miranda, que a contrata como assistente”. Até aí, tudo bem. Complemento, dizendo que “Andrea, por sua vez, vê no emprego uma oportunidade de ouro para fazer contatos e alavancar uma futura carreira, quando poderá escrever sobre ‘assuntos sérios’, entre os quais moda definitivamente não se inclui, pelo menos não em sua percepção um tanto ingênua e preconceituosa”.
Ao reler a crítica, me dei conta de que, em 2006, ainda tinha a ingenuidade, e a pretensão, de querer ditar o que o filme deveria ser, e não escrever sobre o que de fato ele é ou era.
Quando falo do confronto entre os mundos aparentemente irreconciliáveis de Miranda e Andy, é que começo a fazer minhas ressalvas. Escrevo que O Diabo Veste Prada “é um filme engraçado, charmoso e muito bem realizado, mas lamento que “tenha tão pouca ousadia ao enfocar a trajetória de Andrea como uma espécie de jornada em nome da virtude”. Acrescento que a personagem, “repetindo um paradigma onipresente no cinema norte-americano, vivencia sua passagem pela redação de Runaway como uma espécie de Gata Borralheira que, depois de transformada em princesa, encontra o caminho da luz, da autorrealização e se desvencilha de um microcosmos que, apesar de ter-lhe ensinado lições importantes, é superficial demais para conter suas pretensões intelectuais e existenciais”. Aí começo a me equivocar em meu texto.
Ao reler a crítica, me dei conta de que, em 2006, ainda tinha a ingenuidade, e a pretensão, de querer ditar o que o filme deveria ser, e não escrever sobre o que de fato ele é ou era. “Mais realista e provocativo teria sido ver Andy aceitar as regras do jogo, tentando impor seus pontos de vistas, mas admitindo as limitações de seu idealismo”, escrevi, acrescentando que a comédia de Frankel não ia “muito além do mero entretenimento”, como se isso fosse um problema.
Reconheço que mudei de opinião nesses quase 15 anos. Sim, Diabo Veste Prada é, em certa medida, formulaico, uma vez que se serve quase ao pé da letra da Jornada do Herói, tantas e tantas vezes reproduzida em roteiros hollywoodianos. Mas isso, hoje percebo, não é de forma alguma uma fraqueza. À época, falhei ao não dar o devido destaque ao eficiente roteiro de Aline Brosh Mckenna e à direção de Frankel, capazes de retratar de forma convincente os bastidores do jornalismo de moda e de, principalmente, fazer do embate entre Miranda e Anna uma espécie de fábula de iniciação tão marcante ao ponto de se tornar referencial. Mas isso, talvez, somente o tempo é capaz de ensinar.