Os dias têm começado lentos, silenciosos, introspectivos. A luz que há um mês adentrava o quarto mais cedo, antes das 6 horas, agora é preguiçosa, outonal, e quando coloco os pés para fora da cama e piso os tacos do chão do apartamento, já os percebo mais frios, hesitantes em me acolher. E a sensação é espantosamente confortável.
Talvez por conta dessas sutis diferenças que lentamente se anunciam, estes dias de isolamento social, para minha surpresa, não são todos iguais. Tampouco eu. Minha barba cresce a olhos vistos diante da impossibilidade de ir ao barbeiro, revelando-se encaracolada sob o queixo, e a imagem no espelho vai dia a dia se transformando. Ou será que eu a enxergo em mais detalhes, como antes não conseguia? Talvez. Que bela palavra essa: talvez. Plena de possibilidades.
Quase um mês se foi desde que passamos a nos ver de forma mais microscópica, em câmera lenta. Alguém disse que nunca mais seremos os mesmos depois dessa repentina mudança de velocidade. Acho que é verdade.
Percebo cabelos grisalhos, que se anunciam de forma evidente à medida em que eles se avolumam, e perdem o corte, servindo de prova irrefutável da passagem do tempo. Quase um mês se foi desde que passamos a nos ver de forma mais microscópica, em câmera lenta. Alguém disse que nunca mais seremos os mesmos depois dessa repentina mudança de velocidade. Acho que é verdade. Reconheço que estou mais perto de mim, devo confessar.
Não me incomoda o fato de estar sempre dentro de casa. Livros, discos e filmes me reconfortam, e me conectam estética e sensivelmente comigo mesmo, me fazem lembrar quem eu sou por baixo da correria dos dias que deixei provisoriamente para trás. A incerteza de quando esse exílio vai terminar deveria ser, eu sei, angustiante, mas não é.
Será que, de certa forma, nossa natureza mais profunda não está aproveitando este momento para nos dar sinais, e se instalar? Assim como os animais que andam invadindo as cidades vazias e os céus que aos poucos ficam mais limpos, revelando paisagens antes ocultadas pela poluição, esta quarentena tem sido desafiadora, porque rouba pretextos para não fazer o que importa. Temos de encarar a vida como a louça que se acumula na pia da cozinha, ou o pó sobre o chão. Somos nós.