Semana passada, enquanto me aventurava pelas acidentadas trilhas do cânion de Fortaleza, no norte do Rio Grande do Sul, próximo à divisa com Santa Catarina, ouvi da guia que nos acompanhava que muitos habitantes daquelas bandas jamais haviam tirado os pés da região. Sua sogra, nascida e criada nos entornos do município de Cambará do Sul, nunca havia visto o mar, que não fica a muito mais de 150 quilômetros dali, no litoral dos dois estados vizinhos.
A senhora, descendente de imigrantes italianos e hoje com mais de 80 anos, tampouco já enxergara de perto as espetaculares paisagens que a nora leva, todos os dias da semana, gente do mundo inteiro para conhecer de perto. “Ela diz que trabalhou a vida toda, e está cansada. O que viu do mundo é suficiente”.
Diante de tanta beleza intocada pelo homem, que de mim exigiu algumas horas de caminhadas, e alguns escorregões tragicômicos no terreno encharcado pela chuva que anda caindo por lá nos últimos dias, fiquei bastante intrigado. Como alguém que passou toda a vida tão perto dali nunca teve o desejo, ou mesmo a curiosidade, de explorar uma geografia tão monumental, cenário de filmes, minisséries e novelas, como Além do Tempo, folhetim global das 18 horas que estreou na última segunda-feira?
A verdade é que aquela senhora e eu, que nunca nos vimos e possivelmente jamais nos conheceremos pessoalmente, pertencemos a mundos muito distintos, apesar de relativamente próximos no mapa. Muito cedo, decidi que precisava viver em um mundo sem porteiras e, depois de uma infância itinerante, tive a oportunidade de, aos 17 anos, partir de casa para um ano fora do país. Aprendi muito cedo, portanto, o que é estar longe, a lidar com encontros e despedidas.
“A verdade é que aquela senhora e eu, que nunca nos vimos e possivelmente jamais nos conheceremos pessoalmente, pertencemos a mundos muito distintos, apesar de relativamente próximos no mapa.”
Ela, talvez, tenha visto muitos partirem. Cambará do Sul, que já teve mais de 12 mil habitantes, viu com o passar do tempo a população minguar nos últimos anos para pouco mais de 6 mil, com o fechamento de uma fábrica de celulose que empregava milhares. Muitos foram embora, esvaziando a localidade.
A senhora ali fincou suas raízes, muito provavelmente não por apenas por escolha sua, mas em decorrência do seu destino, muito parecido ao de muitas mulheres de sua geração. Ajudou os pais na lavoura, casou-se com um jovem da mesma localidade, que tampouco conhece o mar, ou já esteve na capital gaúcha, Porto Alegre. Simone, a guia, contou que um amigo do sogro, um homem mais ou menos da mesma idade, já na casa dos 80, teve de ir recentemente a Caxias do Sul, cidade grande mais próxima, consultar um médico. Assustou-se com tantos carros, gente que nunca havia visto, barulho e movimento. “Ele ficou muito nervoso, começou a chorar e pediu para voltar”.
Por ironia, eu percorri mais de 400 quilômetros para, com meus próprios olhos, ver o deslumbrante cenário dos cânions que, para a maior parte dos habitantes mais idosos da região, sempre foram triviais, tão próximos, mas de alguma forma distantes. Uma bela, porém algo inútil paisagem. Tudo é mesmo muito relativo.