Um dos versos da canção “As Time Goes By”, tema do filme Casablanca (1942), clássico incontornável do cinema romântico mundial, preconiza: “A kiss is just a kiss“. “Um beijo é só um beijo”, em bom e velho português. Mas a suposta banalidade nesse gesto de afeto não vale para o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do nanico partido Republicanos.
A cena do encontro entre os lábios dos jovens heróis Wiccano e Hulkling, personagens importantes de Vingadores: A Cruzada das Crianças, HQ da Marvel que estava à venda na Bienal do Livro da capital fluminense no último fim de semana, serviu de gatilho para a ira conservadora do político. Desafiou o que ele denomina de “valores cristãos”.
Pastor e sobrinho do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella alega que o beijo entre os dois rapazes é uma afronta à moral e aos bons costumes, e desafia o Estatuto da Criança e do Adolescência, expondo menores de idade ao que ele chama de “conteúdo pornográfico”. Uma má influência a ser evitada a qualquer custo, inclusive o da democracia.
Sim, para Crivella, uma demonstração de afeto e intimidade, banal quando compartilhado em público por um casal heterossexual, transforma-se em imagem obscena, capaz de corromper meninos e meninas, se protagonizado por dois rapazes, mesmo que seja numa HQ destinada a adolescentes, e não a crianças.
Aos olhos maliciosos do alcaide puritano, os garotos-heróis da Marvel são, lá no fundo, vilões disfarçados, pelo simples fato de serem gays e se amarem, por desafiarem o status quo que ele tanto defende. Devem ser escondidos, recolhidos e devolvidos às sombras, de onde nunca deveriam ter emergido.
Então, um beijo não é só um beijo.
Crivella se viu profundamente afetado por essa imagem: dois super-heróis do sexo masculino que se amam diante dos olhos do mundo. Esse beijo é uma subversão da ordem que sustenta o prefeito na posição que ocupa. Ele está onde está porque legitima o discurso da exclusão, do preconceito e, por fim, da censura, como meio de proteger uma visão restrita da realidade, na qual alguns têm mais direitos do que outros.
Na origem do substantivo afeto, encontra-se, para além do senso comum, a possibilidade muito mais complexa e profunda de afetar, um verbo que permite múltiplas definições, que vão desde tocar, física e emocionalmente, até consternar, passando por impressionar, sensibilizar e até desesperar. O beijo é, assim, potência pura, porque é carregado de significados.
Crivella se viu profundamente afetado por essa imagem: dois super-heróis do sexo masculino que se amam diante dos olhos do mundo. Esse beijo é uma subversão da ordem que sustenta o prefeito na posição que ocupa. Ele está onde está porque legitima o discurso da exclusão, do preconceito e, por fim, da censura, como meio de proteger uma visão restrita da realidade, na qual alguns têm mais direitos do que outros.
Crivella sonha, talvez, ser super-herói, um Vingador ungido pelo poder divino, mas desconfio que nunca conseguirá porque desconhece (ou não compreende), na pequenez do seu projeto de poder, o verdadeiro significado do afeto. Não é livre.