Christopher e Christian nascem pobres, no interior de Goiás. A mãe não resistiu ao parto e o pai, desempregado e sobrevivendo de bicos, os entrega à adoção. O primeiro é levado embora por uma família abastada do Rio de Janeiro, que não quer saber do outro bebê, mais frágil, adoentado, deixado à própria sorte. Idênticos, os gêmeos têm destinos opostos.
Até aí, a premissa de Um Lugar ao Sol, telenovela de Lícia Manzo, há duas semanas no ar na Rede Globo, pouco ou nada tem de novo. Pelo contrário: histórias de gêmeos são recorrentes na história do folhetim televisivo, das duas versões de Mulheres de Areia (1973 e 1993) a Paraíso Tropical (2007), passando por Baila Comigo (1981).
Acontece que Lícia Manzo não é uma autora genérica, sem uma marca própria. Vida da Gente (2011) e Sete Vidas (2015), ambas exibidas no horário das 18 horas, foram sucesso de audiência e traziam em comum traços que cativaram o público e chamaram a atenção da crítica.
Ainda que, como Um Lugar ao Sol, se desenvolvessem em torno de argumentos folhetinescos, melodramáticos, as duas tramas, com o passar dos capítulos, presenteavam o espectador com o frescor de diálogos muito bem escritos, a serviço de personagens complexos, nada unidimensionais, e de tramas cuidadosamente arquitetadas para não subestimar o público. O êxito dessas novelas garantiu a Lícia o valioso passaporte para o horário nobre das 21 horas.
Um Lugar ao Sol teria estreado no segundo semestre de 2020, sucedendo Amor de Mãe, não fosse pela pandemia. Suas gravações tiveram de ser interrompidas, para apenas serem retomadas, e concluídas, neste ano. Sim, contrariando o padrão Rede Globo, a novela estreou com todos os seus capítulos já gravados e, portanto, sem a possibilidade de ter seus rumos alteradas pela recepção do público. Pelo menos, teoricamente.
Para muitos já percebida como tapa-buraco enquanto a emissora produz o remake de Pantanal, clássico de Benedito Ruy Barbosa, Um Lugar ao Sol é muito mais do que isso. Lembra da história dos gêmeos, descrita no primeiro parágrafo deste texto? Pois é, Lícia Manzo resolveu brincar com os clichês que povoam tramas semelhantes, para subvertê-los. Christopher, agora batizado de Renato, cresce para se tornar um grande babaca, mimado e irresponsável em vários sentidos. Christian, o irmão pobre, é, em tese, bom, honesto, inteligente, porém irremediavelmente azarado. Tudo dá errado em sua vida.
Em uma novela, digamos, mais tradicional, o reencontro entre os gêmeos, vividos com bravura por Cauã Raymond, aconteceria apenas do meio para o fim da história toda, mas, em Um Lugar ao Sol, Renato e Christian não levam mais do que três capítulos para se verem e, após uma noite inteira em busca do tempo perdido, serem atropelados pelo destino. Renato morre no lugar de Christian, que assume sua identidade. Ele deixa para trás todo o seu passado, à exceção de Ravi (o ótimo Juan Paiva), seu melhor amigo, quase irmão de criação, que ele arrasta para sua nova vida.
Em uma novela, digamos, mais tradicional, o reencontro entre os gêmeos, vividos com bravura por Cauã Raymond, aconteceria apenas do meio para o fim da história toda, mas, em Um Lugar ao Sol, Renato e Christian não levam mais do que três capítulos para se verem e, após uma noite inteira em busca do tempo perdido, serem atropelados pelo destino.
Como Um Lugar ao Sol terá pouco mais de cem capítulos, o ritmo da ação é muito mais acelerado do que em uma produção convencional. Cada episódio é recheado de surpresas, reviravoltas. Renato/Christian mergulha com vontade em sua nova vida, casando-se com a namorada do irmão morto, a temperamental Bárbara (Aline Moraes), filha de Santiago (José de Abreu), dono de uma rede supermercados. Mas não consegue se esquecer da adorável Lara (Andréa Horta), noiva de Christian, que, deprimida com a morte do amado, decide voltar a viver no interior de Minas Gerais com a avó, Noca (Marieta Severo). Lá, reencontra um namorado de adolescência, Mateus (Danton Mello), agora viúvo e pai de uma filha.
A transformação de Christian em Renato é interessantíssima do ponto de vista dramático. Na medida em que ele finge ser o irmão que mal conheceu, tateando no escuro de sua ignorância, ele vai se distanciando do que foi no passado, para descobrir seu lado mais obscuro. Sua régua moral é Ravi, que, a despeito de não concordar com a decisão do amigo/irmão, não o abandona, ainda que por vezes seja por ele humilhado.
As vidas dos dois amigos passam a correr em paralelo – no mesmo dia em que o filho de Renato e Bárbara nasce morto em uma maternidade, o de Ravi e da pichadora Joy (Lara Tremouroux) nasce dentro de um ônibus, em meio a um engarrafamento, ironicamente nos braços de Renato, e sobrevive.
O grande mérito de Lícia, como em suas novelas anteriores, é equilibrar elementos melodramáticos, de voltagem emocional intensa, com doses de realismo, de bem-vinda coloquialidade. Para isso, há personagens que conversam, outro traço essencial da teledramaturgia da autora de Um Lugar ao Sol. São deliciosos os papos entre Lara e sua avó, Noca, vivida com maestria por uma Marieta Severo ao mesmo tempo doce e forte. Também promete a relação da ex-modelo Rebeca (Andréa Beltrão), irmã de Bárbara, e sua melhor amiga, Ilana (Mariana Lima), outra ex-manequin. São mulheres que vivem, cada uma à sua maneira, a crise da meia idade, e falam sobre isso.
Nicole (Ana Baird), a terceira filha do “rei Lear” Santiago, traz à tona uma pertinente discussão sobre gordofobia. E de uma forma inusitada. Obesa, a personagem usa seu sofrimento, todo o preconceito do qual é vítima, como matéria-prima para seus monólogos de comédia stand-up, rindo, mesmo que com amargura, das dores que deveras sente.
A ótima direção de Um Lugar ao Sol, supervisionada por Maurício Farias, em parceria com André Câmara, traz à novela frescor também visto em Amor de Mãe. Há muito de cinema nisso, na busca por soluções cênicas potentes, por enquadramentos inusitados, em uma fotografia primorosa, e na edição, que alterna momentos eletrizantes e mais contemplativos. A base disso tudo, contudo, é o texto de Lícia Manzo, que entra para ficar no primeiro time da teledramaturgia brasileira.
Se os números da audiência não são muito animadores, uma vez que talvez não seja suficientemente palatável para o público médio, Um Lugar ao Sol é hoje a atração mais vista no canal de streaming Globoplay, talvez porque seu público já não seja aquele que vê tevê aberta, em fluxo e tempo real. Mas digo, sem qualquer medo de errar, é um novelão da porra!