Nelson Rodrigues dizia ser, ele mesmo, uma “flor de obsessão”. Na verdade, quem dizia isso sobre Nelson, ainda segundo ele, era o amigo Otto Lara Resende, e ao anjo pornográfico cabia aceitar e reproduzir o epíteto – não apenas por seu gosto indiscriminado por epítetos, mas também com certo tom de vênia. É verdade que Nelson Rodrigues se repetia muito em seus temas e personagens, não só nas peças mas também nas crônicas. O gosto pela repetição pode ter vindo convenientemente para sanar o esgotamento criativo que um jornalista à moda antiga como ele estava sujeito todo santo dia, debruçado sobre a máquina de escrever em regime cambojano. Mas eventualmente, como alguém deve ter percebido, as variações sobre o mesmo tema serviram como necessárias marteladas em uma mesma tecla polêmica que Nelson tentava, a todo custo, esclarecer um pouco mais a cada nova coluna.
A temática de um cronista é como uma ruína circular de Borges: constrói um corpo inteiro a partir de inúmeros detalhes esmiuçados e repetidos.
De modo que não posso afirmar que tudo tenha começado a partir de Nelson Rodrigues, mas é fato que a repetição se tornou um hábito da crônica, e os mesmos lugares, os mesmos temas e os mesmos personagens podem ser vistos em tantos textos de cronistas quanto se possa organizá-los por assunto. Da escarradeira de Nelson Rodrigues, aos urubus de Luís Henrique Pellanda, passando pela boemia de João do Rio, a temática de um cronista é como uma ruína circular de Borges: constrói um corpo inteiro a partir de inúmeros detalhes esmiuçados e repetidos.
Acredito que seja dessa maneira que a crônica faz a busca pelo real que o romance tão bem assimilou em sua trajetória – e sem quem o chancelasse ainda por cima. Quando leio Gógol descrevendo a Avenida Niévski, sinto que conheço a principal passagem de São Petersburgo ainda que aceite o pacto ficcional do romance. Na crônica de Luís Henrique Pellanda, descubro mais sobre a Pracinha do Amor do que todas as vezes em que passo a pé por lá, mesmo sabendo que nada garante a veracidade do texto.
Da minha parte, sobre pelo que me obceco? Talvez da minha infância, da praia onde nasci. Não é nada original fazer a crônica das próprias memórias, mas o universo particular está sempre em expansão no terreno textual. Enquanto Perec tenta esgotar um lugar parisiense qualquer, a crônica, como na alegoria do beija flor e o incêndio na floresta, vai extinguindo a realidade. Uma vez por semana.