Ele tinha um moicano cor de rosa e jaqueta jeans sem mangas, mas usava um moletom por baixo da jaqueta porque fazia muito frio. Na jaqueta, muitas tachinhas e patchs de bandas. Não devia ter mais do que vinte e cinco anos. E estava deitado num daqueles canteiros circulares ao redor do chafariz da Rua XV – um quarteirão da rua calçada que, de fato, está quase sempre apinhada de punks. Eu estava na rua a trabalho, ou pelo menos tentando. Havia saído da redação da Gazeta do Povo na praça Carlos Gomes e estava perambulando pelo centro em busca de alguma pauta, algo sobre o qual pudesse escrever. Outros tempos da profissão, eu sei.
Ele me viu passando de sobretudo e apontou para uma flor cor de rosa como o cabelo dele que estava florescendo espaçadamente entre a terra do canteiro e, como se me conhecesse, perguntou se eu já havia cheirado aquelas flores. Eu disse que não, ao que ele prontamente me convidou para cheirá-las. Que começo de conversa engraçado, eu pensei, enquanto me sentava ao seu lado na mureta de pedra do canteiro para cheirar as flores. Tinham um cheiro adocicado, mas bem leve. Comentei isso com ele. “Pois é, mas no ano passado essas flores tinham um cheiro diferente”, ele disse com um certo lamento na voz. E por que você acha que isso aconteceu, eu perguntei a ele. “Não sei, mas eu acho que é pelo mesmo motivo pelo qual as cerejeiras ainda não floresceram esse ano”. Então olhei para as sakuras que enfeitavam o próximo quarteirão. De fato, permaneciam com suas copas verdes e sem flores. Não tinha percebido isso e jamais saberia que as flores do canteiro da Rua XV tinham mudado de cheiro de um ano para o outro. Perguntei se ele tinha algum palpite. “Acho que é a poluição”.
Usava seu ócio para se observar e se conectar com o mundo ao seu redor. Acho que foi o protagonista do filme Curtindo a Vida Adoidado que falou que é preciso parar e cheirar as flores, senão a vida passa depressa demais.
Naquele dia, entrevistei uma botânica da Universidade Federal e perguntei sobre as sakuras. Ela me disse que não era a poluição, mas que as flores saíam depois de um período curto de dias frios e baixa luminosidade. Como o inverno daquele ano havia demorado a se manifestar, elas não haviam florescido. Seria a qualquer momento então? Sim, ela respondeu. E algumas flores podem mudar de cheiro por causa disso também? Ela não sabia, mas possivelmente. O punk sabia de algo. Fiquei pensando naquele menino, estirado numa mureta às onze horas da manhã de uma quarta-feira de julho, cheirando as flores e puxando pela memória seu aroma do ano anterior.
Usava seu ócio para se observar e se conectar com o mundo ao seu redor. Acho que foi o protagonista do filme Curtindo a Vida Adoidado que falou que é preciso parar e cheirar as flores, senão a vida passa depressa demais. Sinto que a lição está aí, mas ainda assim me parece um pouco mais do que isso. Uma matéria no jornal sobre cerejeiras em flor parece algo muito bobo para ser publicado, pensei por um momento, mas escrevi mesmo assim. Porque é parte da vida, e porque as pessoas que passam apressadas pela Rua XV todos os dias podem não reparar no que os punks reparam. É sempre bom ter uma mão que nos guie de volta ao mundo sensível, onde a dinâmica do cotidiano não amortece a curiosidade e os sentidos. Tive uma mão naquele dia. Ela tinha moicano cor de rosa e tachinhas na jaqueta.