A primeira aparição dessa pessoa fantástica foi durante a infância de Sofia. Ela era apenas uma criança, mas achava sua personalidade um tanto diferente das pessoas a sua volta. Adamastor era o nome dele, um senhor de idade e um tanto afeminado. Era cheio de manias e trejeitos, e sempre estava no meio do caminho, das coisas, da vida. Tinha histórias para contar, e as contou enquanto Sofia pôde ouvi-las com seus ouvidos de menina. Ouvia com atenção Adamastor falar. Suas histórias eram como lições que um pai inexistente passava para uma filha que transbordava em sua existência. Explicava coisas simples e delicadas, como o olhar das pessoas. Discorria pacientemente sobre a velocidade das folhas que caíam das árvores e o porquê de sua queda, tirava satisfação da fome de informação de Sofia e saboreava cada nova descoberta da criança.
Mas falava sobretudo sobre suas próprias nostalgias. Heimweh, como ele chamava. Sofia não conseguia entender boa parte do que Adamastor falava, a maior parte era em alemão, de modo que Sofia cresceu sem entender muito bem as Heimweh de Adamastor. Sabia apenas que ele as sentia, quando colocava a mão no peito e fazia um solene lamento seguido de um meneio de cabeça que, para além da compreensão, comovia a menina. Quase como que quem sentisse a nostalgia era ela, e não ele. Os sentimentos fluíam de Adamstor para Sofia como fluem líquidos de um tubo de ensaio para outro em um laboratório de química, mediante os processos adequados.
E tudo era adequado para Sofia. Classificar Adamastor como imaginário era doloroso e até ofensivo para ela, que preferia simplesmente não classificar sua existência não-humana. Ele era tão necessário, tão vital para sua própria experiência que se recusava a concordar com os adultos de que ele simplesmente não estava ali. Adamastor era o limite e era o caminho que conduzia seus primeiros anos em um planeta estranho. Adamastor não era humano, e não demorou muito para que Sofia não se sentisse humana também. Eram apenas os dois, figuras inclassificáveis, que erravam pelas ruas em companhia um do outro, ele se deleitando com as próprias explicações, ela absorvendo para dentro de seu coração inocente as saudades e a não-humanidade daquela pessoa, importante demais para não existir.
“Adamastor não era humano, e não demorou muito para que Sofia não se sentisse humana também.”
Um dos últimos encontros que Sofia teve com Adamastor antes de sua morte foi marcado por um detalhe besta. Estavam os dois, não humanos como nunca, caminhando pelas ruas e conversando longamente sobre os sabores de sorvete. Adamastor só gostava de um único sabor: o de pistache. Sofia experimentava sua destreza na arte da argumentação tentando dissuadir o amigo da ideia de elencar o pistache como a melhor matéria-prima que de que um sorvete poderia dispor. Mas ele era tão nostálgico quanto irredutível, e não dava o braço a torcer. Por fim, Sofia cedeu sem se enfurecer, e para sempre atribuiu a ideia fixa de Adamastor a sua feminilidade. Como um homem não poderia querer saber de outro sabor de sorvete daquela forma, ela se perguntava, sem contudo deixar de admirar a beleza de presenciar convicções tão claras. O sorvete de pistache em si continuou neutro em seu gênero, mas a obsessão e a defesa do amigo em seu favor lhe causou uma impressão muito forte sobre sua personalidade tão distinta.
Foi a última impressão que teve tempo de formar sobre seu amigo. Um dia, sem saber exatamente o porquê, Adamastor não estava mais lá. Foi embora, morreu, não se fez mais presente em sua não-humanidade para lhe explicar sobre a vida e delimitar o caminho dos passos incertos da menina. Sofia precisava se acostumar agora a viver sem paredes, e isso acabou se provando mais difícil do que ela gostaria. Agora era ela, e apenas ela, em cima de um muro de dezessete metros. Qualquer deslize, qualquer erro mínimo, era a deixa de que a ceifadeira da morte precisava. E Sofia aprendeu com Adamastor a desviar da morte como quem desvia da ignorância de existir sem saber. Compreender que não precisava passar a vida equilibrada entre muros altos foi o aprendizado que a dor da perda de Adamastor lhe proporcionou depois de um certo tempo.
O que não impediu Sofia de sentir sua ausência de uma maneira desesperada. Agora, ela buscava Adamastor nos recônditos de um misticismo adolescente que, viria a descobrir depois, de nada serviria. Buscou Adamastor em sonhos, mas ele tampouco visitaria seu inconsciente. Seu amigo alemão estava para sempre evaporado no éter, e a dor dessa irreversibilidade pesou em seu peito como mil toneladas de ferro fundido. O que se seguiu foram tempos turbulentos em sua vida que mal começara a se desabrochar. Difícil era mesmo manter relações com humanos, em um nível que ela julgasse adequado. As mentes pareciam nunca estar em pleno estado de compreensão mútua, e Sofia não entendia a humanidade das pessoas na mesma medida em que as pessoas não entendiam sua não-humanidade.
Foi aí que o síndico contratou um porteiro. E assim ele foi anunciado: O Porteiro. Ele chegou rapidamente ocupando sua função de porteiro da vida de Sofia. Deliberava sobre quem deveria entrar em sua vida e quem deveria permanecer do lado de fora. O Porteiro prefere uma saída política, e finge que está dormindo na bancada quando alguém indesejável toca o interfone. Abre o portão só para quem deve abrir o portão, e sempre recebe Sofia com um sorriso e algumas histórias cheias de metáforas quando uma saída à rua se fazia necessária. Mas a adaptação ao porteiro foi custosa. Houve uma revolta, e houve assassinatos. Um tio, um primo e um amigo, eliminados pelas mãos de outros humanos. Foi nesse período que Sofia guardou em uma gaveta funda seu Corão e passou a ler a Torá. Cursos de tiros começaram a aparecer em sua vida, e ela aprendeu a disparar balas e comprou armas para a prevenção do Holocausto.
Tudo isso foi necessário para sua adaptação, e hoje, mesmo sem abandonar sua não humanidade, Sofia vive. Ela conseguiu viver fazendo o que o Porteiro já fazia por ela: proteger do mundo, sem erguer paredes como costumava fazer Adamastor. A menina, já formada em mulher, agradeceu pelos muros do amigo no momento em que entendeu por que passou um período se escorando, e um outro período se equilibrando por cima deles. Os muros são preparativos para andar reto, concluiu ela, um pouco antes de perceber que podia voar.