Aquele susto, o levantar desorientado, os olhos procurando alguma coisa que justifique, em primeiro lugar, a razão para a interrupção do sono. Acordei, mas ainda não sei por que. Aos poucos, me dou conta de que há uma barulheira infernal, e logo depois percebo que vem de dentro do quarto. Não consigo distinguir o que é por um momento, de modo que a cadeia de informações absorvidas pode ser resumida assim: acordei por causa de um barulho alto no quarto. Pois é, mas a literatura não é feita só desse tipo de objetividade.
Passemos ao próximo passo da árdua tarefa de interpretar o mundo ao redor num estágio de embriaguez de sono. São cinco horas da manhã e ainda é necessário descobrir o que faz essa algazarra dos diabos no meu quarto. Percebo que o som vem de trás da cortina e, incerto pela desorientação e pelo medo do desconhecido, afasto o veda-luz com a ponta dos dedos. O enigma se elucida: não é um homem por trás da cortina, como no Mágico de Oz, mas um grilo enorme, marrom e sem nenhum tipo de ética sonora ou noção de política de boa vizinhança. Nada do plácido cri cri que se ouve ao longe, este Stockhausen dos ortópteros prefere emitir um único, estridente e infinito cricrilo. Cinco da manhã, como eu falei. A desorientação, o susto, a noite que já vinha sendo mal dormida antes desse episódio infeliz joga a ética animal para o alto e tranco o fantasma de Coetzee no baú da cama para decidir: vou matar esse bicho.
Aquele susto, o levantar desorientado, os olhos procurando alguma coisa que justifique, em primeiro lugar, a razão para a interrupção do sono. Acordei, mas ainda não sei por que. Aos poucos, me dou conta de que há uma barulheira infernal, e logo depois percebo que vem de dentro do quarto.
Nenhuma testemunha da vileza contra Gaia que estou prestes a cometer, escolho uma meia jogada no chão como um Coronel Mostarda escolheria um castiçal entre uma faca, um revólver, um pedaço de cano e uma chave inglesa. Péssima escolha, mas dou umas giradas com o pedaço de tecido na mão e calculo com minha cabeça cheia de sono e confusão que um golpe certeiro daquilo pode levar a alminha daquele inseto para o próximo plano. Miro com um olho meio fechado e outro meio aberto e acerto o bicho de raspão, o que não mata, mas o faz evaporar no cenário do quarto.
Agora já não sei mais onde ele está e o barulho vem mais forte de algum lugar impreciso. Continua por ali, não mas não o vejo em parte alguma. Fico pensando no que fazer. O grilo não é daqueles animais aventureiros que se deixam seduzir para o voo com uma mera corrente de ar, de modo que ignora escondido a janela aberta e enche a aurora com sua sinfonia atonal pós-moderna. Não vai ter jeito mesmo. Abandono a meia e busco as havaianas, as destruidoras de mundos, ceifadora de vidas.
O grilo para de cricrilar quando entro no quarto novamente com o chinelo na mão, como se soubesse de seu destino agora. Não é rápido o suficiente, contudo, para que eu não o localize, atrás do aquecedor do quarto. Uma bofetada sem sangue – não gosto de fazer mal aos animaizinhos, mas não negocio com terroristas às cinco da manhã – e ele corre para debaixo do móvel da cama. Uma chinelada no chão e prendo a última pata que não conseguiu se enfiar no vão. Arrasto o bicho pra fora e posso executá-lo sem piedade. Mas a piedade, senhoras e senhores, é uma Fernanda Montenegro vestida de Nossa Senhora no Auto da Compadecida, um deus ex-machina que me faz buscar o caminho difícil. Resolvo pegar o bicho pela ponta da asa e o atiro pela janela, que fecho em seguida, temendo um retorno obstinado ao conforto do meu lar.
A pequena crise está resolvida, o coração começa a desacelerar com muito custo, a adrenalina teima em não deixar a corrente sanguínea. O que vou fazer agora com esse sono perdido e essa noite mal dormida é um problema para o dia que clareia lá fora. Deito e rolo na cama mas nada me deixa adormecer, apesar do cansaço. Já durmo mal pra diabo, vem um bicho desses e termina de ferrar com tudo. Eu devia ter matado aquele grilo.