O ônibus para e aproveito o desembarque de outros viajantes para esvaziar a bexiga sem ter que me segurar num cubículo de plástico sacolejante nos fundos do veículo. Qualquer banheiro de rodoviária, para mim, é como uma extensão de casa. Quilometragens acumuladas fazem da terra firme uma âncora de familiaridade. O recinto é como todos os outros: azulejado, frio, com divisórias de granito e portas de fórmica, sujo como é de se esperar, pichações e vandalismos ocasionais que terminam o trabalho de deterioração do tempo. A bexiga aperta e a mochila, na falta de um gancho enferrujado que pendure casacos e bolsas, vai ao chão com a naturalidade do filho pródigo. Nada me tranquiliza mais do que o cheiro de urina envelhecida que azeda o ar de um banheiro público. Por um instante meu corpo cessa de sentir o trepidar constante do motor a diesel, o sacolejar da suspensão exageradamente flexível da máquina velha, o estofado sujo da poltrona sob a pele, cuja penugem da estampa acaricia o antebraço e o pescoço com o afago dos desconhecidos.
O cordão da descarga é o mesmo em todo banheiro: branco, seco, franciscano em seu início, apenas para terminar negro e molhado de algo, que imagino ser os diversos fluidos em eterno combate no recinto: urina e sabonete, água sanitária e smegma, água da pia e água da latrina, um paraíso miltoniano em pé de guerra. O grande mictório, imenso em sua extensão, capaz de receber quinze pênis simultâneos que despejam as reservas de quinze bexigas urgentes, é como um móvel de casa – conveniente, onipresente, requisitado. A pia conserva seu pudor de porcelana branca virginal por insistência, talvez o único lugar que é lavado constantemente de forma involuntária por todos os presentes. Não há nenhuma ajuda de custo a ser coletada, não há roleta que me coloque condicionais ao uso desse recinto. É um banheiro selvagem de rodoviária, inconspurcado pelo fluxo capitalista de moedinhas em troca de alívio fisiológico. A privacidade grátis, o legítimo pit-stop ao alcance do homem comum, à margem do significado de valor, ao largo do significado de decência.
Sinto que, às vezes, é como se a porta de um banheiro como esse me atirasse, já na saída, para qualquer canto do mundo, como um buraco de minhoca que interligasse rodoviárias mundo afora. Um buraco no interior da Lituânia interligado a uma metrópole norte-americana, uma madrugada fria em Santa Catarina cuja porta principal dá para uma zona suburbana de Goiás. Rodoviária é tudo igual, afinal de contas, e, em todas suas muitas semelhanças, nada é mais evidente que seus banheiros. Sem cuidados, sem amor, sem inspirar nada de humano. É aí que me sinto em casa.
Rodoviária é tudo igual, afinal de contas, e, em todas suas muitas semelhanças, nada é mais evidente que seus banheiros. Sem cuidados, sem amor, sem inspirar nada de humano. É aí que me sinto em casa.
Bato as mãos molhadas na lateral das calças na falta de papel toalha disponível no dispenser. O ônibus liga seu distinto motor e dá duas buzinadas por trás do farol alto que joga sobre a plataforma de embarque. É hora de voltar para a estrada. Mais algumas sentado nesta máquina de metal debaixo da noite estrelada rumo à próxima parada. Rumo ao próximo banheiro. Rumo ao próximo resquício do que pode ser chamado de casa.