Deu em todos os jornais que nevaria no último fim de semana. Algo a ver com uma massa antártica se deslocando pelo continente, desconsiderando nossa semaninha de chuvas constantes que, suspeito, não tenha sido o suficiente para reabastecer os esvaziados reservatórios de água da cidade. A chuva continuava a cair enquanto o ar tratou de ficar subitamente gelado, o que atiçou a expectativa das pessoas. Quase que Curitiba inteira não teve outro assunto por dias inteiros a fio.
Devo contar, aos estranhos à cidade, que Curitiba é uma capital que tem um orgulho ufanístico de seu frio. Seus moradores se definem por ele, se sentem compartilhando algum tipo de martírio coletivo por morar numa cidade gelada em um país tropical, ao mesmo tempo em que são tomados por ciúmes enormes quando ouvem alguém falando de um frio que não seja o frio de Curitiba. Que não se permita um curitibano ouvir da boca de alguém de fora da cidade sobre algum frio de Minas Gerais ou São Paulo. Reivindicam imediatamente o lugar de fala, a vivência do verdadeiro frio impressa nas gargantas arranhadas e nos narizes vermelhos de seus habitantes.
Devo contar, aos estranhos à cidade, que Curitiba é uma capital que tem um orgulho ufanístico de seu frio. Seus moradores se definem por ele, se sentem compartilhando algum tipo de martírio coletivo por morar numa cidade gelada em um país tropical, ao mesmo tempo em que são tomados por ciúmes enormes quando ouvem alguém falando de um frio que não seja o frio de Curitiba.
Dentro da celebração afetivo-martírica do frio, a neve é um assunto à parte. Só existiram duas que se tem lembrança na cidade: a primeira, de 1975, estampa alguns cartões postais até os dias de hoje, como se fôssemos habitantes dos Alpes suíços e suas neves eternas. A segunda, de 2013, foi um fenômeno fugidio e localizado, uma experiência compartilhada apenas por uma fração da população. Não houve neve na região central, mas ainda é possível encontrar fotos de carros cobertos com uma fina camada de gelo e o registro de algumas pessoas empolgadas com a situação. A do último fim de semana seria a terceira, quem sabe algo mais gravável na memória do que a última. A rede local de televisão fez uma cobertura extensa do possível evento, as redes sociais se inundaram com comentários, tiradas e opiniões sobre o frio enfim, não se falava de outra coisa.
E no fim das contas não nevou. A frustração varreu a cidade como uma onda cósmica. A neve é a recompensa exótica do martírio. A redenção que não vem. Trememos com nossas meias insuficientes e nossas ceroulas por baixo das calças em meio à chuva que cai fina, mas líquida. Bufamos uma fumaça de ar quente, plasmado no tempo seco de nosso inverno insuficiente. Sentimo-nos bobos com nosso frio sem neve, enquanto Santa Catarina faz a festa. Registros de neve até em Florianópolis! Poucos puderam dormir com essa notícia. Fica cada vez mais claro para nós que somos uma cidade apegada ao passado. À neve de 1975, ao modelo de transporte urbano que algum dia foi elogiado por alguém importante, à urbanística que foi considerada exemplo em décadas passadas, aos apodos de cidade sorriso e cidade ecológica, cujo lastro ninguém consegue achar. A neve que não veio nos tira o orgulho do frio. Abandonamos a posição de mártires para sermos apenas bobocas batendo os queixos. Quem sabe ano que vem?