A senha chama. O casal esperava lado a lado, misturando tédio e irritação em semblantes impacientes. O papel está na mão do homem, que demora microssegundos para entender que o número impresso no papel termosensível corresponde ao que a tela agora exibe em pulsantes cores. É o suficiente para que a companheira lhe acorde com uma cotovelada enfezada. Ele acorda e ela deixa transparecer uma súbita satisfação, não pela vez de ser atendida que chegou, mas pela oportunidade de ter se mostrado mais atenta e mais ligeira em pensamento do que o homem – e igualmente pelo poder de lhe punir por aquilo, como se esperasse uma brecha o dia inteiro.
Eles sentam à mesa. Querem comprar um carrinho de pastel e precisam de um empréstimo. Ele administra, ela põe a mão na massa, explicam resolutos com suas funções. Marido e mulher na riqueza e na pobreza. Nenhum parece achar a parte que lhe cabe uma injustiça. Sentem-se mais vítimas do Estado e seus pesados tributos. As agruras do trabalhador informal, uma ladainha que escorre pelas paredes do banco, tamanha sua densidade no ar do recinto. Ouvem com atenção as linhas de crédito e as taxas aplicadas, e nota-se que mais uma vez ali dividem papéis. Enquanto a mulher escuta com atenção e não deixa passar nenhum detalhe, o homem parece pegar as informações principais e, apertando os olhos fixados no infinito, calcula algumas coisas de cabeça – provavelmente o tempo que o carrinho de pastel demorará para se pagar e qual será a jornada diária e o lucro esperado nesses primeiros momentos, sempre tão críticos a um novo empreendimento.
Ele administra, ela põe a mão na massa, explicam resolutos com suas funções. Marido e mulher na riqueza e na pobreza.
Essa divisão acaba dando mais munição para o sadismo da esposa. Quando pergunta mais uma vez sobre um detalhe do empréstimo que deixou passar enquanto pesava óleo e farinha de trigo em uma balança monetária, ela é ríspida. Está em um papel à sua frente, e ela aponta com ferocidade e repreensão. “Você é surdo ou é cego? Tá aqui, não tá vendo? E ele já explicou”, e ele se desculpa com o olhar ao mesmo tempo em que se põe em estado de alerta, pronto para revidar com fúria ao menor sinal de vacilo da mulher, o que, felizmente para ele, não demora a chegar. Está em seu território, afinal.
Capital, juros, parcelas, tudo isso tem pouco a ver com a vida da cozinheira curiosa que abre os olhos e os ouvidos para não deixar o casal ser ludibriado pela maldição da usura excessiva. Pergunta algo, certa da ignorância do marido, mal suspeitando se tratar de uma pergunta excessivamente básica. Ele, por sua vez, se volta triunfante e dá uma lição na mulher, gritando à meia-voz com grosseria e impaciência. Ela por sua vez, devolve-lhe o olhar culpado, mas logo recobra as forças e diz que perguntou porque tinha certeza de que ele não tinha prestado atenção nesse detalhe específico do empréstimo. Ele lhe devolve a acusação com mais grosseria e diz que aquilo era óbvio, e que, em outras palavras, seria melhor que ela se colocasse no seu lugar. Ela bufa de arrependimento, mais nervosa consigo mesma, por ter vacilado em algo simples, do que com o marido, de quem parecia já esperar esse comportamento.
A caneta esferográfica descartável passa com dificuldade pelo papel, é uma assinatura simples, mas difícil para as mãos que a tecem. O dinheiro cai na conta a um simples apertar de botão do gerente. Os dois estão entre a emoção e a apreensão, como se agora tivessem mais alguém em suas vidas que lhes atacarão ao menor vacilo: o banco. Ele levanta e ela não. “Já acabou, acorda, vamos embora”, lhe dirige a voz irritada. Ela se levanta e suas vozes hostis se dissipam entre a falação da agência bancária. Saem discutindo e trocando ofensas leves. São agora sócios de um carrinho de pastel. Torcem para que o negócio vá bem. Querem o melhor um para o outro.