Sábado, oito e meia da manhã. Entre um ato de defesa do governo Dilma e uma passeata a favor do impeachment e da intervenção militar, cerca de 500 pessoas se amontoavam na porta de um auditório no centro de Curitiba para assistir à revisão de véspera do concurso do Banco do Brasil para o cargo de escriturário – um dos maiores da história da instituição, que tem na região de Curitiba e São José dos Pinhais o maior número de inscritos – nada menos do que 45 mil candidatos pra pouco menos de 300 vagas. Mas o pior não é isso. O pior é que eu estava no meio.
A última vez em que estive em um aulão de véspera foi quando prestei vestibular para Jornalismo em 2005, que na época era o terceiro curso mais disputado da UFPR, depois de Medicina e… Publicidade. Tenho lembranças vagas da ocasião, mas nenhuma delas evocou muita sobriedade por parte dos organizadores do evento. Como a revisão funciona mais como uma distração para quem está nesse período estressante que antecede uma prova de cinco horas que exigiu meses de preparação, não estava esperando muito mais do que algumas músicas, uma meia dúzia de piadas sem graça e uma mensagem de incentivo do cursinho particular a que me submeti durante um mês e meio. Gostaria de estar mais preparado para aquele momento.
“O coordenador do curso pega o microfone, dá um bom dia demorado ao som de um poperô de dois anos atrás e explica que todo ano as revisões têm um tema, e que daquele ano escolheram o filme Os Vingadores, da Marvel.”
O coordenador do curso pega o microfone, dá um bom dia demorado ao som de um poperô de dois anos atrás e explica que todo ano as revisões têm um tema, e que daquele ano escolheram o filme Os Vingadores, da Marvel. Antes que eu pudesse digerir um pouco mais a informação de que receberia minhas últimas lições de adultos vestidos com fantasias baratas de super-heróis para uma plateia composta exclusivamente de outros adultos, o professor de informática pula no placo vestido de Homem de Ferro com um cavanhaque de Tony Stark especialmente cultivado para a ocasião. Ele manda algumas dicas finais sobre comandos de word, excel e configurações de sistema e, em menos de 20 minutos, pula fora e dá lugar a uma ciranda de super-heróis de festa infantil que espero nunca precisar ver em uma festa infantil de verdade. Thor, Batman (que não é dos Vingadores), Chapolin Colorado (que não é americano) e até o papa Bento XVI (que a despeito do que dizem nas cercanias da Praça Carlos Gomes, não é tão super-herói assim) aparecem para dar as pinceladas finais na nossa incipiente sabedoria de concurso antes da derradeira data. Sai a figura do educador, entra um híbrido de entertainer com facilitador de provas. Não chega a ser a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire da música de Chico César, mas é um choque de contrastes assistir a um professor especialista em Código de Defesa do Consumidor dançar o Bonde do Tigrão fantasiado de Hulk, com enchimentos de espuma, máscara e luvas.
Entre uma aula e outra, pausa para tirar fotos e distribuir brindes entre os alunos. O coordenador do curso briga em tom de brincadeira com o fotógrafo “abaixa a manga da camisa, tá gay, não gosto”, e tira foto abraçado com as alunas, mas freia os homens “não quero abraçar marmanjo”, e distribui vale-descontos para um motel da cidade “quem quer um vale-amorzinho? Você tá precisando, não tá?”, e diz mais meia-dúzia de frases que não se esperaria ouvir de um responsável por uma instituição de ensino. Em dado momento para. Diz algumas palavras de incentivo e diz que não devemos esmorecer diante das dificuldades, e para provar seu argumento liga o YouTube no telão e passa a esquete “Joseph Klimber”, do coletivo humorístico Os Melhores do Mundo, sobre um sujeito que vai se aleijando e se readaptando profissionalmente até que termina trabalhando como peso de papel, completamente desmembrado, surdo e mudo. Em outra pausa, mostra a homenagem que a equipe de vídeo fez enquanto o aulão acontecia: um time-lapse das pessoas chegando ao auditório enquanto uma lista interminável de nomes rola embaixo da inscrição garrafal “Aprovados BB 2015” ao som de “We Are the Champions”. Mais brindes. Vale-churrascaria. Bolsas de estudo de 50% para quem dançar de maneira mais empolgante o clássico do Legião Urbana “Tempo Perdido” (pausa para a reflexão). Red-bull. Pipoca doce de canjica. Estojos. Fichários. Agendas. Alguns professores aparecem sem fantasia nenhuma, e agora já não sei mais se isso é bom ou ruim no contexto geral. Mais funk. Mais Legião Urbana. “Quase sem Querer” é a música que embala quem quer fazer uma dança tão extravagante a ponto de ganhar uma bolsa integral de estudos. E todos dançam. Eu olho, e me sinto mal por não querer dançar.
Ao meu redor, pessoas anotam desesperadas as últimas fórmulas de juros simples e juros compostos, escrevem freneticamente notas soltas em papéis apoiados nas coxas tentando deixar ali seus últimos resquícios da tensão que lhes acompanhou durante todo o processo. Em épocas de crescimento zero anunciado – lê-se recessão – estabilidade profissional é coisa seríssima. Tão séria que movimenta uma indústria gigantesca – e milionária – de cursos preparatórios para concursos públicos. O lado bom é que em uma trajetória de sucesso, sempre dá pra apagar aquela vez em que você rebolou ao som de Legião Urbana junto com professores vestidos como super-heróis e pontífices impopulares um dia antes da sua vida mudar para sempre.