O punk chegou à minha vida como uma revelação. Era possível fazer arte com a raiva, e era possível sentir raiva publicamente, e ter a sua raiva tolerada e compreendida por outras pessoas igualmente raivosas. Não apenas isso: era possível usar a sua raiva como força transformadora na vida de outras pessoas. E isso apenas com a expressão artística da coisa. O discurso, por outro lado, era ainda mais animador: longe de lirismos e preocupações etéreas sobre relacionamentos e abstrações de todos os tipos, as letras e os manifestos instigavam ao pensamento crítico e à subversão e, de uma maneira muito direta, apontavam os dedos furiosos para as mazelas do mundo e, por meio de pinceladas gerais, sugeriam a mudança.
Foi mais ou menos o que tentei fazer. Tomei consciência de algumas questões que precisavam ser resolvidas, li alguns livros, discuti ideias com pessoas certas, escrevi eu mesmo, mais tarde, alguns textos para a pequena comunidade punk (que começava a se corresponder via internet) e fiz uma banda para perpetuar o modelo. E foi aí que percebi algo que me fugiu das vistas durante todos esses anos: no geral, as pessoas que me incitavam a ser um cidadão mais cioso e menos alienado eram, elas mesmas, amebas que de alguma forma conseguiram dominar a arte de fazer um discurso genérico para incitar as massas. Abaixo o sistema, o governo é mau, político é ladrão, olhaí todos esses pobres passando fome, e essas guerras hein, os poderosos engravatados sanguessugas que mamam na sua mais-valia comem caviar, ganância é do patrão, e o lucro é do patrão, e nada ia além disso porque eu achava que não era o papel da música ir além disso mesmo. Mal sabia eu que o que não ia além disso era o intelecto dos garotões que disfarçavam inaptidão para a vida com desapego material. E fora do país a coisa era ainda pior, porque quem denunciava o sistema era parte indissociável dele.
“No geral, as pessoas que me incitavam a ser um cidadão mais cioso e menos alienado eram, elas mesmas, amebas.”
A partir daí, criei um trauma intelectual com a música que me tortura até hoje. E não só com o punk rock. Qualquer cantor de qualquer gênero musical que eu vou ouvir precisa ser minimamente mais sagaz do que o cidadão médio, seja em versatilidade, em lirismo ou em discurso. Tenho o pé atrás porque aprendi que intenção e emoção podem ser emuladas, mas o intelecto pode ser no máximo mascarado, e temo um mundo em que artistas mais idiotas do que eu são admiradas por pessoas a quem respeito.
A principal desvantagem disso, entre tantas outras, é a barreira intelectual que interponho entre a indústria e meu coração treinado contra a própria vontade para colocar em segundo plano a emoção musical. Deveria ser mais espontâneo, mais intuitivo, mais poético com relação á música, mas não consigo. O punk me ensinou a ser uma pessoa crítica