Tomei a iniciativa, por livre e espontânea vontade, de ir a uma boate na semana passada. Logo em sua concepção, a ideia foi permeada pelo ineditismo que chega às raias do absurdo (onde ficam essas raias? Numa piscina olímpica? Queria ver algum dia o Michael Phelps nadando nas raias do absurdo), e como o absurdo e o ineditismo são dois dos pilares do tipo de literatura que eu aprendi a gostar em minha primeira juventude, decidi transformar a noitada em texto.
Vamos então às motivações: a boate em questão faria uma noite exclusiva com o tema “hardcore”, e eu me senti impelido a buscar pela primeira vez na vida essa sensação que os jovens experimentam sem maiores arroubos todas as noites, que é entrar em um lugar e gostar da música que está tocando. Já faz um tempo que o hardcore não está entre os meus gêneros musicais mais ouvidos, mas é fato que o gosto adolescente raramente se dilui completamente na espuma dos dias – a menos, é claro, que se trate de um fã de música pop. De qualquer forma, fiz algumas contas de cabeça e concluí que melhor do que isso não ficaria. O hardcore é o último gênero que eu ainda escuto e que é barulhento o bastante para se tocar para uma aglomeração desordenada.
Ora bolas, vivi a época. Calcei minhas botas, a bermuda preta e o casaco de moletom igualmente preto, tal qual um orgcore de raiz. Faltou a corrente na carteira, de um arcaísmo tão extremo que um amigo chegou a sugerir certa vez que os jovens iriam pensar que quem tinha inventado aquela moda era eu. Enfim, o pacote completo do adulto feito tentando correr atrás do tempo perdido e que parece tão inadequado aos olhos do mundo quanto o molecote que desde cedo quer usar roupa social, gravata borboleta e suspensórios para simular uma erudição a partir do vestuário.
Ora bolas, vivi a época. Calcei minhas botas, a bermuda preta e o casaco de moletom igualmente preto, tal qual um orgcore de raiz.
Bom, chego no lugar e está tocando Jimi Hendrix. Ok, ok, estão aquecendo os motores, não dá pra soltar algum hit do Madball logo de cara. Pego um drinque e fico a postos na pista de dança, pronto para chutar cabeças e surfar por cima dos presentes em um mosh improvisado. Essa ilusão logo se dissipa. O lugar está entregue às moscas, tanto pelo horário precoce para qualquer tipo de festa quanto pela linha musical a ser seguida. Ademais, é uma balada. Qualquer comportamento minimamente desordeiro vai ativar o beast mode dos seguranças grandalhões, e aí seria capaz da coisa chegar realmente perto de um show do Madball.
Espero um pouco mais, entre mais Queens of the Stone Age e outras amenidades do tipo. De repente começa a tocar 96 Quite Bitter Beings do CKY. Incrível, o coração se enche e o sangue ferve com o riff sincopado que ressoa nas paredes e bate nos ouvidos indiferentes da meia dúzia de gatos pingados que não compreendem o que está acontecendo. O clima esfria pra mim e esquenta para a moçada jovem logo em seguida quando uma sequência de emocore arrebata a pista, que enche de súbito. Descubro que “hardcore” é só uma outra palavra para “punk limpinho”, e nada parecido com Sick of it All vai chegar a tocar por ali naquela noite. Não me importo. Estou me divertindo como nunca em uma boate.
Finalmente, já perto da minha hora de ir embora, ouço, com o pensamento desde já no despertador esporrando nos meus ouvidos depois da noite mal dormida, as músicas que fizeram a minha adolescência. Rancid, The Offspring, algum punk irlandês, a vida é boa. Chuto e danço como um hooligan e tenho a leve impressão de que as pessoas ali continuam curtindo a música, mas com a metade da minha força vital. Talvez não signifique tanto pra elas, mais ecléticas e afeitas ao ambiente que abriu uma exceção sonora naquele dia. Para mim, é a vitória.
Dou o braço para algumas pessoas e dançamos em rodas cujos pares se alternam, depois finjo esbarrar nas pessoas com uma violência simulada, uma imitação da coisa real. Estou feliz no mundinho sintético da música que sai direto de computadores ao invés de guitarras e baterias, sinto que cheguei ao ponto de entender a empolgação da garotada com as casas noturnas. Aquela música me acolheu e aquelas paredes pela primeira vez me aceitaram. Canto a plenos pulmões, dou risada, bebo mais e chuto o ar como um caipira. Por meio da música, estou sempre em casa.