O primeiro cachorro era feio como só ele. Tinha uma pelagem falha e ressecada, amarela acinzentada, com fiapos maiores crescendo em partes estranhas do corpo esquálido. Uma pereba cor de rosa e protuberante crescia na orelha direita, pontuda e levantada, o que o levava a ocasionalmente parar o que estivesse fazendo para coçá-la. Sua face era muito magra, e só aparentava ser mais saudável por causa do entorno do focinho, que era peludo como os bigodes de uma lontra. Mas mesmo estes pelos eram sujos, ressecados e duros. Chamavam-lhe de Ponce, como Ponce de Leon, mas em tudo lhe devia o porte da homenagem.
Era uma criatura digna de pena, maltratada pela vida e por tudo que nela há. Mesmo assim, Ponce era feliz, ainda que extremamente arredio. Estranhava muito qualquer pessoa que quisesse lhe dar um pouco de comida na rua, e frequentemente corria de pedaços de pão ou outra coisa que eram atirados ao chão, temendo ser mais uma das muitas pedradas que já tomou de bêbados, crianças e donos de estabelecimentos próximos da Rua Miranda, onde gostava de passear. Mas Ponce corria com uma noção concreta de que a probabilidade do objeto atirado ser comida ou pedra era razoavelmente balanceada, de modo que costumava esquivar-se já farejando o ar à procura de aromas que lhe despertassem o estômago. E sua fuga acanhada logo se transformava em uma cômica meia-volta.
O corpo entortado pela felicidade parecia ser mais comprido do que era, e os pelos que balançavam em seu peito podiam ser vistos arrepiados entre suas patas. Com o focinho ao chão, lá voltava Ponce, até que encontrasse o bocado que lhe era devido. Comia rápido, mas isso não era o bastante para que sua confiança fosse conquistada: dava então uma rápida olhada para o seu benfeitor do momento, como se não quisesse pressioná-lo a repetir o gesto – quase uma demonstração de um aparente orgulho canino. Caso a pessoa então desse mais dois ou três nacos de sua própria comida para ele, aí sim Ponce se aproximava, quase desarmado, para tentar roubar também um afago.
Chamavam-lhe de Ponce, como Ponce de Leon, mas em tudo lhe devia o porte da homenagem. Era uma criatura digna de pena, maltratada pela vida e por tudo que nela há.
Nem que fosse com o pé. Ponce era desses pobres coitados acostumados com o luxo acessível de um pé delicado que lhe roçasse o peito por baixo, enquanto de pé, ou por cima, como quando gostava de atirar-se de costas no chão para deixar que lhe explorassem melhor uma das últimas partes sensíveis de seu maltratado corpo. Difícil imaginar o quão prazeroso é o toque sem jeito e pesado de um solado de borracha ou madeira no peito quando não se é um cachorro como Ponce. Quem testemunhasse seu deleite poderia imaginar as agruras enfrentadas na curta vida deste cão. Isso porque um afago era um evento raro na vida de Ponce, ainda mais raro do que ganhar comida de estranhos na rua. Sua feiura contribuía para construir sua existência sem afeto e sem compaixão. Por isso, quando uma exceção se materializava, o vira-lata tentava extrair o máximo dela, como se abastecesse uma imaginária corcova de afetividade que lhe permitia sobreviver por semanas a fio sem qualquer carinho. Mas isso só acontecia depois que Ponce baixava a guarda. Até que se prove o contrário, tudo é perigo e o estado de alerta não é um estado, mas a completa realidade de sua essência.
Da mesma maneira, Ponce não atendia a qualquer chamado ou assobio, e desenvolveu um talento que é crucial a qualquer cachorro de rua: a capacidade de detectar intenções maliciosas. Percebia risadas, trejeitos e nunca, nunca confiava em um grupo de pessoas. Até mesmo um cão como Ponce era capaz de atinar para o fato de que o homem se acovarda de seus sentimentos primitivos quando está sozinho, ao mesmo tempo em que se camufla no anonimato do coletivo para praticá-los sem culpa. Fugia das turmas como se foge do mau tempo em alto mar, mas, sempre de longe, circundava solitários de gestos mansos e candura no olhar. Fazia-se perceber, e enquanto não olhassem para ele, Ponce fitava fixamente seu benfeitor potencial. Por essa razão, muitas vezes chegou perto de ser atropelado, desviando dos carros que passavam devagar pelas ruas estreitas e acidentadas do bairro do Trocadero. O buzinaço que levava do motorista mais atento, entretanto, vinha muitas vezes como uma benção, pois o pedestre desligado que não raro achava ser a razão inconveniente da raiva do condutor, finalmente percebia o cão feioso que lhe rondava, às vezes por quarteirões inteiros. O que acontecia a partir daquele ponto era inteiramente devido ao carisma de Ponce e ao tamanho do coração do estranho.
Não contava apenas com a gentileza de transeuntes para manter-se vivo, é claro. Alimentava-se de restos de comida deixados no lixo e, quando a fome apertava, contentava-se em lamber a calçada de paralelepípedo da frente da peixaria, frequentemente encharcada com a água salgada da carne dos peixes. Chegou a matar um ou dois pombos quando era mais jovem, mas Ponce era um desses cachorros que envelhecem cedo demais, e não demorou que os maus-tratos lhe tirassem a vitalidade e a beleza do corpo. Ponce sempre foi um cachorro de rua, desde que o chutaram para fora da casa onde fora parido, por ser inconvenientemente mais uma boca para ser alimentada. Nascera de uma ninhada de seis, dos quais quatro morreram ainda pequenos. Ponce e um irmão sobrevivente foram criados no balanço do acaso, e depois daquela vez em que saíram portão afora, passaram apenas um tempo juntos e depois nunca mais se viram.
Ponce morreu em uma noite clara. Fora atropelado por uma mobilete que descia com desnecessária velocidade uma ladeira que desembocava na Rua Miranda, onde gostava de perambular. O farol fraco da motoca se diluía na luz dos postes e da lua, e não fora o suficiente para atentar a seu movimento. Ponce olhava para outro lugar fixamente quando a primeira roda o atingiu. Foi o tempo de meio ganido. Num átimo, seu corpo rolou sobre as rodas e deu um rápido solavanco para cima. Os pneus esmagaram seus órgãos internos e o sangue escuro escorreu de sua boca e de seu ânus.
A condutora da mobilete desequilibrou-se com a colisão e caiu cinco metros para a frente. Era uma menina bonita, loira, que trazia uma maleta de violino às suas costas. Não usava capacete e bateu forte a cabeça contra o paralelepípedo da rua. Ficou oito dias em coma e depois acordou com uma reversível amnésia recente, mas sem sequelas maiores. Depois que curou a parte do rosto que ralou no chão, ficou com uma cicatriz horrenda próxima da parte da testa onde começam a nascer os cabelos, que podia ser facilmente escondida com uma franja. Ponce, por sua vez, foi recolhido em um saco plástico preto por homens da prefeitura, que o incineraram em um galpão bem afastado da cidade onde nasceu e cresceu. Ninguém saberia dizer o que Ponce olhava na hora em que foi atingido pelo veículo.