É comum que o primeiro texto do ano faça um balanço do que foram os 365 dias anteriores. Criar, a partir de um recorte temporal, uma narrativa que confira personalidade, orientação ou mesmo algum sentido no movimento interpretado. Não sei por que, acho que é uma tentativa de compartimentalizar a longa existência em pequenas porções inteligíveis.
O ano de 2020, podemos arriscar com certa tranquilidade, foi relativamente difícil para todo mundo, ao menos em alguma medida. Tarefa árdua é, vagando pelo mundo, encontrar alguém que tenha terminado os últimos 12 meses sem nem uma ruga de envelhecimento a mais nas faces. Aliás, difícil mesmo foi vagar pelo mundo. 2020 foi o ano da imobilidade, da suspensão, da inércia indefinida, o ano em que ficamos parados, como campistas ameaçados por um urso marrom que precisam se fazer de morto até que o perigo se afaste. Fechamos as portas, as janelas, até mesmo as cortinas, para que não fôssemos tentados pelos dias lindos e vazios que tivemos diante de nossas vistas.
Tentamos contornar tudo com arte, terapia, escrita, culinária caseira, novos hobbies, calistenia e sono prolongado, mas, sem que percebêssemos, o mundo foi voltando ao normal e tivemos que, com ele, voltar ao normal também. Dois momentos: o primeiro, muito cedo, quando ignoramos a ameaça do vírus por ignorância. Depois, quando o ignoramos porque a maré da sociedade, de maneira arbitrária, nos empurrou para a praia da normalidade. Eventualmente nos sentimos todos traídos pelo andamento das coisas. Tentamos jogar a culpa nos outros. Nas previsões, nas políticas públicas, nos vizinhos, nos jovens que não paravam em casa, nos velhos que não paravam em casa, até que nós mesmos também não paramos mais em casa. O último assassino na longa lista policalesca que precisamos desvendar acabou sendo nós mesmos.
Tentamos jogar a culpa nos outros. Nas previsões, nas políticas públicas, nos vizinhos, nos jovens que não paravam em casa, nos velhos que não paravam em casa, até que nós mesmos também não paramos mais em casa. O último assassino na longa lista policalesca que precisamos desvendar acabou sendo nós mesmos.
Triste é constatar que, diante de tão pouca mudança na dinâmica cotidiana no fim das contas, não precisamos de muito para nos desestabilizar. Basta parar o sonho, basta impedir o vislumbre. Trabalhamos para ter dinheiro e temos dinheiro para poder sonhar, mas quando o dinheiro não busca o sonho, passamos as semanas acumulando patrimônio de maneira estúpida, até mesmo despropositada, se levarmos em consideração a morte que espreita em cada esquina. Por que não torrar tudo? O consumo se alimenta do medo, mas só porque o maior medo é de não ter aproveitado o quanto se podia. Por que não abrir outra garrafa de vinho, pedir outro delivery, comprar qualquer geringonça da internet que distraia um pouco da situação. Nos pegamos estúpidos mais uma vez, achando que o dinheiro vai nos possibilitar o conforto nunca alcançado desse ano desconfortável.
No fim, não faltaram ideias que nos permitisse uma redenção da estupidez, mas a teoria é bonita porque é abstrata. Continuamos aqui, estúpidos e tristes, sem conseguir sequer fazer um balanço do ano que confira ao tempo personalidade, orientação ou mesmo sentido. Nem adianta tentar entender 2020. O ano de 2020 será para sempre uma incógnita em nosso calendário pessoal.