É muito difícil explicar que sou sul-fluminense. Parte da confusão de se nascer em um estado que tem o mesmo nome da capital, eu acho. Mesmo nascendo no litoral do Estado do Rio de Janeiro, sou, para todos os efeitos, carioca. O inverso acontece em São Paulo, não sem uma acurácia lógica: todos são paulistas, inclusive os paulistanos. Por essa razão, o meu sotaque é difícil de ser compreendido. Venho de uma terra limítrofe, em que há parte da marrência carioca, mas também há a suavidade da fala do litoral paulistano.
O sotaque é como a cor da pele. Nasce-se com uma e ela mais ou menos indica suas origens, mas nada impede que a coisa se desconfigure ao longo da vida. Reconhecer sotaques, a menos que sejam muito característicos, requer não só um bom ouvido como também uma base catalográfica de sotaques conhecidos bem impressa na memória. Acredito que meu sotaque seja muito suave em relação ao que se ouve na capital carioca ou na região de Petrópolis, por exemplo e, embora não reconheça, alguns amigos de infância dizem que meu jeito de falar se alterou um pouco desde que me mudei para Curitiba. Isso significa duas coisas: uma, que o sotaque é melhor percebido por quem não o conhece direito; dois, que a maneira de falar muda conforme a geografia. Em dado momento do documentário Língua – Vidas em Português, o escritor moçambicano Mia Couto falava sobre o português do brasileiro. Dizia que a difusão do idioma por culturas diferentes produziu um dinamismo raro para línguas europeias. Que o português “namorou no chão do Brasil e também namorou aqui na poeira de Moçambique, quer dizer, sujou-se, no sentido que o Manuel de Barros dá: sujou-se no sentido de que é capaz de casar com o chão”.
Pois de certa maneira é isso: cada detalhe do sotaque que se constrói traz consigo uma marca de um casamento anterior com algum chão. Dos sotaques que eu conheço, o do meu pai é um dos mais fascinantes. Nascido em Ipanema, morou dois anos na floresta amazônica e, desde adolescente, frequenta diferentes regiões de Minas Gerais, de modo que puxa o esse carioca ao mesmo tempo em que encurta suavemente o fim de monossílabas à maneira do amazonense e abre vogais de paroxítonas como os mineiros.
O sotaque é como a cor da pele. Nasce-se com uma e ela mais ou menos indica suas origens, mas nada impede que a coisa se desconfigure ao longo da vida.
O resultado é um falar muito único que meu sotaque hoje emula pela proximidade da criação. Nunca estive no Amazonas e não convivi com gente de Minas o suficiente, mas, com alguma atenção, percebo que trago comigo algo dessas marcações, somado com o que pode ser a fala cantada do curitibano. Sotaque é transmissível, e embora tenha falado que ele depende da geografia, o que lhe dá a veracidade é o componente humano. Mia Couto mais uma vez. “No fundo não está a se viajar do ponto de vista geográfico, mas está-se a viajar por pessoas”.