Falar sobre a carreira de Gregório Duvivier talvez tomasse um grande espaço nesta entrevista. Filho do músico e artista plástico Edgard Duvivier e da cantora Olivia Byington, Gregório começou cedo sua trilha pelo mundo das artes. Entrou no curso de teatro do Tablado, uma das mais icônicas escolas de teatro do país – fundada em 1951 pela escritora e dramaturga Maria Clara Machado -, aos nove anos de idade, muito mais como uma terapia para contornar a timidez do então garoto, do que para aprimorar um possível talento. Nos palcos do Tablado, foram mais de 10 anos de estudo.
Mas o teatro não foi seu único palco. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Duvivier também escreveu três livros; formou junto com outros atores o Porta dos Fundos, no qual é roteirista e atua em muitas das esquetes do grupo; e mantém há quase 12 anos o Z.É. Zenas Emprovisadas, uma peça teatral composta por esquetes de improviso, criada em 2003 por Gregório, Fernando Caruso, Marcelo Adnet e Rafael Queiroga.
Não fosse suficiente, Gregório Duvivier compartilha conosco seus textos em uma coluna semanal, sempre às segundas-feiras, no jornal Folha de São Paulo. E foi no meio de tantos afazeres que o ator, escritor e roteirista conversou com Escotilha, nesta que é a primeira entrevista da série “Diálogo & Interlocução”.
Escotilha » Você talvez seja hoje o artista com maior engajamento político no Brasil. Cultura é uma forma de política ou elas andam dissociadas? Por quê?
Gregório Duvivier » Tudo é político. Não há uma atitude que não seja política. O que falta não são os gestos políticos: é a consciência da política envolvida nos gestos.

Formado em Letras, ator, roteirista, poeta, colunista da Folha, fundador do Porta dos Fundos. Você tem um forte envolvimento com a cultura. Do ponto de vista de quem produz, você considera que a cultura no Brasil reflete nossa sociedade? E do ponto de vista de quem a consome?
A cultura não é um reflexo da sociedade, mas um martelo capaz de forjá-la, já dizia o Maiakovski. Não aceito a teoria de que o brasileiro não gosta de literatura. Acho que a nossa literatura ainda não foi capaz de envolvê-lo. É preciso que os produtores culturais, em todos os níveis, inclusive os produtores e os técnicos, não se afastem do popular, e não o desprezem.
“A cultura não é um reflexo da sociedade, mas um martelo capaz de forjá-la, já dizia o Maiakovski.”
Uma das maiores críticas feitas pelos artistas no último processo eleitoral foi justamente a abordagem quase nula sobre a cultura. Qual a parcela de responsabilidade dos veículos midiáticos neste enquadramento como subproduto que a cultura sofre? Emendando: como a democratização da mídia e os veículos independentes podem colaborar para que este cenário se modifique?
A cultura é o último dos interesses dos políticos, e a culpa disso é da cultura também. Nos interessamos pouco pelo assunto, somos pouco organizados. É preciso gritar, bradar, e para isso é preciso fazer uma arte popular também, e mobilizar o público. Enquanto o discurso do artista for pretensamente apolítico, a política vai continuar sendo acultural.
Com frequência você utiliza sua coluna na Folha de São Paulo para abordar assuntos que por vezes geram longas discussões. Enquanto formador de opinião, você acredita que esses espaços, assim como os de Eliane Brum e Luiz Ruffato no El País, do Antônio Prata na Folha e do seu colega Fábio Porchat no Estadão são capazes de romper com o establishment?
Gosto muito de usar o espaço no jornal para quebrar com o que o leitor está vendo ali: o tom jornalístico, a pretensa imparcialidade, o lead, a pirâmide invertida, aquelas regras todas que o jornal algum dia inventou que tinha que seguir. Romper com isso é fundamental. E surte efeito. A internet também tem servido para isso, pra ecoar vozes dissonantes.
“Enquanto o discurso do artista for pretensamente apolítico, a política vai continuar sendo acultural.”
Na sua opinião, qual a função da crítica cultural? Você acompanha a repercussão dos seus trabalhos?
A crítica é fundamental. E deve seguir o mesmo caminho da arte, aumentar o alcance, dialogar com o público, não ter medo de ser popular. Fico triste de terem tão poucos blogs de crítica. A crítica ainda está restrita ao impresso, e a poucos sites pomposos que imitam o tom do impresso. No cinema já tem bons sites de crítica, como o Omelete.
Humoristas costumam reclamar muito de que o “bom mocismo” e “o politicamente correto” tornaram o humor sem graça. Entretanto, o ator e diretor francês Jacques Tati pouco ou quase nada utilizava a fala e entrou para a história como um dos mestres do humor. Como você enxerga hoje o humor brasileiro?
O que as pessoas chamam de bom mocismo muitas vezes é um humor mais consciente e menos infantil. O humor “contra tudo o que está aí” acaba se revelando ingênuo, fácil de se fazer e sobretudo sem graça. Difícil mesmo é fazer um humor dê uma rasteira nas suas certezas, e diga o contrário do que se espera. O humor brasileiro tem uma tradição sensacional de humor anárquico. Nosso cânone é o maior: Millor, Sergio Porto, Jaguar, Henfil, a lista é longa.

O Porta dos Fundos faz um humor mais engajado, inteligente e crítico. Em certos momentos é possível notar uma influência dos canadenses do Kids in the Hall, que nas décadas de 1980 e 1990 marcaram época com seu humor e suas esquetes afiadas. Estar na internet é um fator preponderante para que vocês consigam manter essa linha de humor?
A internet é o paraíso do humorista. Aqui se tem alcance com liberdade. Só faltava mesmo pagar bem. Se não fosse a internet, o Porta dos Fundos não existiria, ou existiria capenga, castrado – seria melhor que não existisse.
“Difícil mesmo é fazer um humor dê uma rasteira nas suas certezas, e diga o contrário do que se espera.”
Serviços de streaming como Netflix, Amazon, Hulu e mesmo os canais a cabo nos Estados Unidos, como HBO e AMC, têm apostado cada vez mais em séries (cômicas ou dramáticas) mais inteligentes. Temas antes considerados tabus passam a ser problematizados, ou ainda, apresentados como algo natural. O que falta ao entretenimento no Brasil para que atinjamos este mesmo patamar?
Acho que falta coragem de produzir, mas falta também texto. Não temos tradição de roteiro. Os roteiros se escrevem correndo. A grande virada vai acontecer quando os produtores de conteúdo perceberem que roteiro não se escreve da noite para o dia. Um bom começo seria termos uma boa escola de roteiro, e que desse uma atenção especial à comédia.
Como é escrever poesia no sul do mundo, com um índice de leitura (segundo dados do MEC) de 1,7 livro ao ano por leitor? Você acredita que a literatura possua um poder transformador?
Esse índice de 1,7 é mentiroso – leva em conta os livros de colorir. Não se lê nada, quanto menos poesia. Mas acho que está se lendo um pouco mais. Acredito que a literatura é a coisa mais poderosa que tem, junto com o humor, o ebola, a dengue – é preciso saber usá-la.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.