Advogada, duas vezes deputada estadual no Rio Grande do Sul e outras duas vezes deputada federal, também pelo estado gaúcho, Luciana Genro é um dos principais nomes da oposição à esquerda ao governo Dilma Rousseff (PT). Com 30 anos de militância política, Luciana se tornou conhecida em todo Brasil no último pleito eleitoral, quando, com 1.612.186 votos (1,55% do total de votos válidos), ficou em 4º lugar na corrida presidencial.
Expulsa do Partido dos Trabalhadores (PT) no final de 2003 – juntamente com a hoje vereadora por Maceió (AL), Heloisa Helena, o hoje vereador do Rio de Janeiro (RJ), João Batista Babá, e o ex-deputado federal por Sergipe, João Fontes -, após votar contra a proposta do governo petista de reforma da previdência, sua emblemática frase após receber 55 dos 84 votos favoráveis a sua expulsão – cerca de dois terços da direção nacional do PT – ainda ecoa, mesmo passados quase 12 anos. “A única esperança que tenho é na força e na mobilização dos trabalhadores”, disse a então deputada federal.
Boa parte da simpatia angariada durante o período eleitoral se deu por assumir um espaço deixado pelo esvaziamento do discurso socialista do Partido dos Trabalhadores, bem como por suas participações nos debates eleitorais, quando, por exemplo, fez com que o senador Aécio Neves, que lhe apontava o dedo, abaixasse sua mão, exigindo respeito do candidato do PSDB.
Única postulante ao cargo presidencial com um plano verdadeiramente definido para a cultura – e que fez questão de abordar suas propostas durante as eleições -, Luciana Genro abriu espaço em sua agenda para conversar com a equipe da Escotilha, neste que é o segundo episódio da série “Diálogo & Interlocução” (leia a primeira entrevista com Gregório Duvivier).
Escotilha » Durante o processo eleitoral de 2014, artistas, intelectuais e cidadãos comuns criticaram a abordagem quase inexistente sobre cultura. Em sua opinião, por que a cultura é vista como algo descartável? Aproveitando a pergunta, cultura é uma forma de fazer política?
Luciana Genro » Acho que ainda é necessário garantir que o debate sobre cultura seja parte da discussão das políticas de governos. Ou seja, avançar no debate da construção da concepção da cultura como parte das políticas públicas estruturantes. Por isso que, na nossa candidatura, procuramos construir um programa que levasse em conta a importância da cultura como uma política pública fundamental para o país. A cultura não pode ser vista apenas como um espetáculo, a partir de uma lógica financeirizada. Ela deve ser vista como um espaço de emancipação das pessoas, de identificação nacional – respeitadas e valorizadas todas as regionalidades que o Brasil possui – e de reflexão política.
Foi por isso que nós propusemos a construção de bibliotecas públicas federais, a ampliação de verbas de modo a se chegar a 2% do PIB para a cultura e o estímulo à elaboração de planos culturais em todos os entes federados.
Um dos sentidos de democratizar a cultura é ampliar o acesso aos bens culturais universais, já existentes, permitindo que as pessoas construam o seu modo próprio de ser e de participar na comunidade e na sociedade como um todo. Qual então a importância do financiamento público na área cultural? Na sua opinião, ele deve ser apenas à produção ou também ao consumo?
O financiamento público é fundamental, ainda mais no Brasil, onde os oligopólios midiáticos concentram a imensa maioria da produção cultural. As grandes redes de televisão veiculam, em suas produções audiovisuais, um Brasil que só existe no eixo Rio-São Paulo. O financiamento público deve descentralizar essas produções e regionalizar os investimentos. É a única forma de se fomentar vozes alternativas às da grande mídia e de se apoiar realizadores culturais independentes, que lutam para estruturar novas narrativas em um cenário extremamente oligopolizado.
Não sou contra o financiamento para consumo cultural e sigo apostando na luta por melhores condições de vida do povo e contra os ajustes dos governos, que têm gerado desemprego e rebaixamento da média salarial dos trabalhadores. A reversão desse quadro de crise e de desvalorização dos trabalhadores poderia propiciar um maior investimento dos orçamentos domésticos em bens culturais.
Ainda é necessário garantir que o debate sobre cultura seja parte da discussão das políticas de governos.
Artistas, país afora, questionam o que chamam de “privilégio aos grupos e artistas consagrados do eixo Rio-São Paulo”. O próprio Ministro Juca Ferreira foi um dos maiores críticos do atual modelo da Lei Rouanet que, segundo ele, é “perversa e pouco democrática”. Seu programa de governo na disputa à Presidência tinha como uma das prioridades a distribuição regional equitativa do financiamento público. Como você crê que o Governo Federal deveria agir nas políticas públicas voltadas à cultura?
É uma verdadeira tragédia para a cultura do país que artistas talentosos de diversos estados tenham que migrar para o eixo Rio-São Paulo para ter alguma chance de deslanchar suas carreiras. Esse fenômeno não é novo, mas pode ser revertido através da regionalização dos editais e da reformulação das leis de incentivo à cultura.
A Lei Rouanet, aprovada no governo Collor, terceiriza o incentivo à cultura, na medida em que repassa à iniciativa privada a responsabilidade de apoiar artistas e espetáculos. É óbvio que as grandes empresas não vão querer associar suas marcas a artistas de rua, a oficinas circenses, à literatura de cordel… Pelo contrário, vão injetar seus recursos nos artistas já nacionalmente consagrados – que, via de regra, não necessitam de um grande incentivo, pois já possuem carreiras consolidadas e com amplo espaço na mídia.
O governo federal deve assumir para si uma política pública de incentivo à cultura. Deve retirar da iniciativa privada essa prerrogativa e apoiar os artistas independentes, através de editais voltados a este fim, com amplo controle social sobre a aplicação de seus recursos.
Existe no Brasil, há pelo menos 30 anos, um movimento muito forte de Cultura Marginal ou Cultura Periférica, em especial na Literatura, na Música e nas Artes Visuais. Ainda assim, parece que não conseguimos romper com o establishment, com o elitismo cultural. Você acredita que a cultura no Brasil reflete nossa sociedade? Por quê?
Acredito que a cultura reflete o que de mais bonito existe na nossa sociedade. Essas manifestações periféricas são nada mais do que a representação popular na cultura. O que não reflete a totalidade da nossa sociedade é a cultura que é financiada pelas grandes empresas e que é difundida através da grande mídia. Não estou dizendo que esse tipo de cultura não reflete nossa sociedade, pois constitui-se, também, em parte dela. Mas não reflete sua totalidade. Por isso o processo de radicalização da democracia pressupõe, também, uma democratização radical da cultura, a partir de um reordenamento dos mecanismos de financiamento do governo federal.
Os veículos midiáticos tradicionais sustentam o discurso de que a economia interfere no interesse da população por produtos culturais. Resta a questão: a cultura é apenas um produto de mercado?
O capitalismo busca transformar todos os bens produzidos pela sociedade em produtos de mercado. É da natureza deste sistema esse tipo de comportamento. Mas há focos de resistência em todos os setores. Na cultura, essa resistência ocorre de múltiplas formas, espalhadas por todo o país. Uma dessas formas, presente especialmente nos grandes centros urbanos, é a manifestação da arte de rua, promovida por artistas de diversos segmentos, como a capoeira, o teatro, o circo e a música.
Essas manifestações periféricas são nada mais do que a representação popular na cultura.
Qual a parcela de responsabilidade da mídia tradicional na forma como o brasileiro vê e consome cultura? Emendando: a democratização da mídia e os veículos independentes podem colaborar para a mudança deste cenário?
A mídia tem uma imensa responsabilidade na difusão da cultura no país. Especialmente a mídia televisiva e radiofônica, que são concessões públicas. Ou seja, são empresas privadas operando uma fatia do espectro eletromagnético concedido pelo Estado. Pelo caráter de concessão pública, este tipo de mídia deveria privilegiar o diálogo entre as diferentes culturas do Brasil, ao invés de promover um estilo de vida elitista e centrado no eixo Rio-São Paulo.
A democratização da mídia é necessária para trazer regras claras ao setor. Qualquer serviço público concedido à iniciativa privada é devidamente regulamentado. Isso ocorre com as estradas, com os aeroportos, com a energia. Mas estranhamente não ocorre com a mídia. A democratização promoveria uma repartição do espectro eletromagnético, reservando espaço para emissoras comunitárias e públicas. Além disso, poderia fixar uma cota de conteúdo regional nas grades de programação. Enquanto isso não ocorre, é importante o crescimento das iniciativas contra-hegemônicas na mídia.
Enquanto no mundo o entretenimento cultural tem, cada vez mais, utilizado a arte como forma de problematizar e debater questões antes tidas como tabu, no Brasil vemos que as coisas parecem andar no sentido contrário. Você acredita que nosso cenário político – em especial o Congresso, tido como um dos mais conservadores de nossa história – tenha responsabilidade nisso?
Existe um hiato entre as bandeiras democráticas que têm aumentado no Brasil, as lutas feministas, LGBTs, da população negra e da juventude, e o Congresso. Do ponto de vista da luta, essas causas têm crescido e encontrado em vários artistas e coletivos independentes um veículo de contraposição à lógica opressora dominante. Entretanto, a lógica da ampla maioria dos parlamentares do Congresso é a negociata e o toma lá, dá cá. Isso ocorre, também, porque as campanhas eleitorais são, em muitos aspectos, uma expressão distorcida da vontade popular, pois estão fortemente permeadas pelo poder econômico e pela concentração midiática.
Mas sabemos que, na História, as grandes transformações são dadas por saltos, como foi junho de 2013. Por isso é importante que a gente siga nas mobilizações, nas ruas, e lutando por uma Assembleia Constituinte que possa refundar as instituições no país e reaproxima-las das necessidades reais da população.
Existe um hiato entre as bandeiras democráticas que têm aumentado no Brasil, as lutas feministas, LGBTs, da população negra e da juventude, e o Congresso.
Espaços públicos ocupados pela população não apresentam os mesmos índices de criminalidade nem os mesmo padrões criminais que locais não ocupados. O quanto cultura, Segurança Pública e ocupação de espaços públicos se relacionam?
Estão completamente relacionados. Parques, praças, largos e calçadas são espaços que devem ser, cada vez mais, ocupados pela cidadania. Infelizmente, algumas cidades, como Porto Alegre, têm ido na contramão desta tendência e privatizado seus espaços públicos. Cercar um parque é um verdadeiro crime contra o patrimônio ambiental, cultural e de lazer uma cidade. Esse debate deve incorporar, inclusive, ruas e avenidas, que podem ser fechadas em dias específicos, como finais de semana, para atividades culturais e recreativas.
Pra finalizar, redução da maioridade penal, a não discussão de gênero nas escolas e o Estatuto da Família contemplando apenas a união entre homem e mulher: quais as saídas para contornar esse cenário e de que forma (se há) a cultura seria uma ferramenta importante neste processo?
A saída para contornar esse cenário passa pelo fortalecimento de um terceiro campo na política, que não esteja alinhado nem ao governismo petista, nem à oposição de direita liderada pelo PSDB. Em 12 anos de governo, o PT já deu provas mais do que suficientes de sua inação em relação a todas essas pautas relativas à garantia de mais direitos às mulheres, aos negros e à população LGBT. Por outro lado, a oposição de direita sequer menciona esses segmentos em seus discursos, já que a agenda política deles é conservadora por excelência.
Nós, do PSOL, estamos na luta pela construção de um terceiro campo, em unidade com movimentos sociais e populares nas greves, na defesa dos direitos trabalhistas, no combate ao ajuste fiscal de Dilma e Levy e na batalha por mais direitos. Achamos que uma Assembleia Constituinte exclusiva, eleita sob novas bases, pode ser uma saída para a crise política. Esta Constituinte seria eleita sem financiamento empresarial às campanhas, com tempo de TV distribuído de forma democrática entre as candidaturas e com a possibilidade, inclusive, de candidaturas sem filiação a partidos políticos. As políticas públicas para a cultura seriam um importante eixo de debate dentro desta Constituinte, pensando sempre pelo viés de sua democratização e regionalização.
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