A escritora mineira Nara Vidal reside há um bom tempo na Inglaterra. Ainda assim, sua literatura segue pulsando reflexões sobre o Brasil, e fazendo provocações para que os leitores se atentem às nossas tragédias do presente e do passado.
Em mais sua nova obra, Puro, publicada pela Todavia, Nara nos apresenta uma história assustadora: durante a década de 1930, uma cidade brasileira vivencia as consequências dos ideais higienistas e eugenistas que vigoraram neste período, sob a tutela do presidente Getúlio Vargas. Nesta entrevista à Escotilha, a escritora nos fala sobre as escolhas estéticas para o romance e sobre quais são (ou não) as obrigações da literatura de tratar de temas políticos como o racismo.
Escotilha » Puro é um romance curto bastante chocante, e parece explorar uma estrutura algo inusitada, como se assemelhasse ao roteiro de uma peça. Houve alguma inspiração para trabalhar o livro neste formato?
Nara Vidal » A forma do livro surgiu de maneira inusitada. Foi uma espécie de acidente. Eu comecei a escrever Puro antes da pandemia, pois desde lá o assunto já estava me rondando e eu estava fazendo algumas anotações desde então. Nelas, eu comecei a montar o que, na minha cabeça, seria esse romance. Só que comecei a escrever a história em uma prosa linear, de uma maneira mais convencional de romance.
Quando estava relendo e começando o trabalho de escrita, notei que a forma não estava funcionando: eu não estava sentindo o romance, não conseguia achar que aquele fosse um formato bom. Como se ele não estivesse acontecendo para mim.
Como são muitos personagens em um romance muito polifônico, para não me perder, eu comecei a anotar o nome das pessoas em um caderno. Passei a escrever: “Iris fala”, “Lázaro fala”, “Ícaro fala”. Alguns dias passaram, e quando eu voltei para trabalhar no livro, percebi que aquela era uma estrutura interessante, e que talvez fosse a melhor maneira de contar a história. Então pensei que eles não falavam, mas gritavam, faziam silêncio, choravam.
Ali o livro se apresentou para mim, ele se “ergueu”. Comecei a desenvolver a narrativa desta forma, e desde então ela fluiu. Foi um processo muito interessante de experimentar, e que gostei muito. Eu nunca havia escrito algo dessa forma, parecendo uma rubrica de teatro.
A sua obra trata de um momento da história brasileira em que se flertou com ideais higienistas, refletindo um projeto de suposto cunho científico que visava “limpar” raças e corpos considerados inferiores. Queria que você comentasse um pouco sobre como foi o processo da pesquisa para essa obra, e se encontrou alguma dificuldade. Como você trabalhou para reproduzir as vozes e pontos de vista de personagens tão diferentes?
A gênese desse romance vem de dois pontos. Um é mais antigo, e envolve as leituras que vamos fazendo pela vida. Eu fui descobrindo que sabia praticamente nada sobre o movimento eugenista no Brasil, o que achei escandaloso. Foi realmente assombroso. Como pode que o Brasil tenha tido esse projeto de embranquecimento da população e a gente não aprender sobre isso na escola? Como isso não passa dentro do currículo?
Quando eu era criança, esse tema era ignorado. A gente falava sobre Getúlio Vargas, mas ninguém passava por eugenia e sobre o flerte que ele tinha com ideologias fascistas. E quando essas coisas povoam a minha cabeça, eu costumo elaborar por meio da escrita.
O outro elemento que ajudou a construir o Puro foi o documentário do Belisario Franca chamado Menino 23, que acompanha a pesquisa do historiador Sidney Aguilar em uma fazenda no interior de São Paulo onde ele encontra tijolos com a suástica nazista. Descobre-se ali que essa fazenda mantinha crianças negras escravizadas, sendo exploradas de forma brutal. Elas eram tiradas de orfanatos e levadas para essa fazenda.
Fiquei muito assustada com o documentário, a ponto de não dormir. E, mais uma vez, procurei a escrita como um caminho para elaborar e falar do tema. Foi a partir desse espanto com esse Brasil estranhíssimo e cruel que nasceu o Puro.
Puro trabalha, mesmo que de forma tangente, pelo viés da denúncia sobre o racismo vigente no Brasil desde o passado escravocrata, e que continua existindo até hoje, mesmo que nem sempre se assuma como tal. Sendo uma mulher branca, como você encarou o desafio de escrever sobre isso?
Essa questão é muito interessante. Costumo pensar que, por mais que essa pergunta seja relevante, é mais importante ainda pensar no oposto dela: por que eu não escreveria sobre um tema desse? Por uma pessoa branca não escreveria sobre racismo? Se formos pensar que o racismo não é apenas sobre as pessoas negras, mas sobre política, fica claro que a gente precisa entender todas as nuances e o histórico estrutural desse comportamento.
“Eu não quero que a minha literatura conforte ninguém. Ficaria muito contente se ela deixasse as pessoas incomodadas”.
Nara Vidal
O primeiro passo é reconhecer que tivemos uma educação racista. Vários comentários que os personagens do Puro fazem foram repetidos durante décadas de diferentes gerações e acabaram sendo naturalizados. Ou seja, nós todos crescemos num Brasil muito racista.
Não havia uma prática antirracista. E como o racismo era naturalizado, ele não era identificado nem proclamado. Era “assim mesmo”, natural que fosse assim. Depois, começamos a partir para avanços políticos importantes, como um sistema de cotas que finalmente começa a mudar um pouco a estrutura da educação no Brasil, possibilitando que pessoas negras e pessoas de classes menos favorecidas possam frequentar a universidade.
É algo tão importante e até bonito, e ainda tem gente que não consegue entender isso. E as pessoas que não aceitam isso, na minha visão, ou agem de má fé ou são muito ingênuas. É uma das práticas mais avançadas que o Brasil tem, de maior progresso para a nossa educação. A partir disso, a gente começa a identificar que não é normal que as coisas sejam como são, que o racismo existe e precisa ser denunciado, destruído.
É preciso ter todo um empenho antirracista. Não basta dizer “eu não sou racista”, mas é necessário ter uma ideia de combate, porque agora nós já identificamos o que é o racismo e precisamos combatê-lo. Deve-se reconhecer o equívoco para então avançar. Isso deve ser visto como um problema político, de todos nós.
Alguns dos momentos mais horrendos em Puro são os que descrevem as violências contra os corpos de pessoas negras e o direito que os patrões decidiam ter sobre eles. Lendo o romance, foi inevitável pensar em como hoje ainda discutimos o direito ao corpo – das mulheres, por exemplo – ao termos que enfrentar temas como a proposta do “PL do Estuprador”, que parece até saído de uma obra de ficção. Houve alguma intenção na escrita da obra de fazer essa conexão com o presente?
Eu não tive intenção em fazer essa conexão com o presente, mas ela é completamente inevitável. O livro se passa na década de 1930, mas as coisas não avançaram como deveriam avançar. Não acho que a literatura tem obrigação de falar sobre esses temas, mas nós fazemos as nossas escolhas. Podemos escolher falar de temas que atravessam os nossos tempos.
Nos meus livros, gosto de experimentar e correr riscos com formas e temas. O meu livro anterior, Eva, não tem nada a ver com essas questões. Mas, curiosamente, tem uma questão que parece que perpassa minhas obras que é o corpo da mulher. Eu me interesso muito sobre isso, e fico muito chocada com esse acesso dos homens para legislar o nosso próprio corpo e explorá-lo.
Esta “PL do Estuprador” é uma coisa escandalosa e absurda. Ainda bem, as pessoas falaram e protestaram, pois é isso: a questão do aborto precisa urgentemente ser legalizada e a mulher precisa ter o direito sobre o próprio corpo. Não podemos aceitar que homens religiosos legislem sobre ele. Curiosamente, no Puro, temos a personagem Iris, que é a empregada das famílias. É uma mulher negra que passa por uma esterilização – que, aliás, aconteceu no Brasil nos anos 1990 com as classes mais pobres, algo muito recente.
Se uma obra de arte nos dá uma inquietação, um desejo de falar sobre os problemas sociais, então a gente pode discutir isso. A literatura não tem essa obrigação. Ela não é didática, não pode explicar nada. Quando ela explica alguma coisa, ela está empobrecida. O que a literatura precisa fazer é o oposto disso: confundir, perturbar, incomodar.
Eu não quero que a minha literatura conforte ninguém. Muito pelo contrário. Ficaria muito contente se ela deixasse as pessoas incomodadas. Pois esses incômodos são um ponto positivo para todo o tipo de arte.
Já o projeto estético é outra questão. Há, na concepção do Puro, essa preocupação com a estética, através da forma com que os personagens se apresentam e como a narrativa é construída. Mas eu não gostaria de confortar ninguém, pois isso subestimaria o leitor. A arte está aí para a gente se questionar.
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