A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, 2017), de Svetlana Aleksiévitch, é o primeiro livro da autora que reúne depoimentos de testemunhas de tragédias. Publicado originalmente em 1983, é uma reunião de entrevistas com mulheres combatentes da Segunda Guerra Mundial. Neste conflito, um milhão de mulheres lutaram nas Forças Armadas, na União Soviética. A jornalista ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2015 por livros em que vozes anônimas compõem reportagens literárias.
Para compor o relato polifônico, durante dois anos, Svetlana entrevistou mais de 500 mulheres que estiveram no front. Elas serviram em funções diversas, como franco-atiradora, comandante de canhão antiaéreo, sapadora (desativadora de minas terrestres), tanquista, soldadas, enfermeiras, telefonistas, cozinheiras.
O discurso masculino sobre a guerra exalta o heroísmo em matar o inimigo, vitórias e derrotas, estratégias militares, ação e oposição de ideias. Na guerra heroica, é comum encontrar a mulher em função subalterna, como a enfermeira que se apaixona pelo soldado. Mas na guerra “feminina” não há heróis nem façanhas, apenas pessoas ocupadas com tarefas desumanizadoras.
Para reumanizar dolorosas experiências, os depoimentos foram tomados de forma intimista, em casa. Senhoras de setenta ou oitenta anos rememoram o tempo em que tinham 16, 17 anos e o mesmo ardor de colegas de sexo masculino na defesa da Pátria. Estimuladas pela propaganda do governo, enfrentaram oposição primeiro das famílias. Depois, das chefias nos centros de alistamento. Já no front, os comandantes desacreditam de suas habilidades técnicas, como se lê no testemunho da franco-atiradora Maria Ivanóvna Morôzova:
Na guerra heroica, é comum encontrar a mulher em função subalterna, como a enfermeira que se apaixona pelo soldado. Mas na guerra “feminina” não há heróis nem façanhas, apenas pessoas ocupadas com tarefas desumanizadoras.
“Bem, então chegamos ao front. Nos arredores de Orcha… Na 62ª Divisão de Caçadores… O comandante, me lembro como se fosse agora, era o coronel Boródkin, ele nos viu e ficou irritado: me impuseram umas mocinhas. Que ciranda feminina é essa? É um corpo de baile! Isso aqui é guerra, não é um bailezinho. Uma guerra terrível… Mas depois nos convidou para sua casa, serviu o almoço. E o escutamos perguntar para seu ajudante: ‘Será que não temos algo doce para o chá?’ Claro que nos ofendemos: quem ele acha que éramos? Tínhamos vindo para combater. E ele não nos via como soldados, e sim como mocinhas.” (página 50)
Mas elas não estavam preparadas para matar. Nem se despojar dos atributos femininos. Muitas lembram de ter trocado as tranças por cortes de cabelo masculinos. De usarem túnicas, cuecas e botas, em vez de saias, lingerie e sapatos de salto. Têm saudades das mães, de cantar e dançar. Têm mais medo de serem mutiladas do que de morrer. Tudo o que maioria dos homens, até mesmo seus companheiros, consideravam “ninharias”.
A guerra não tem rosto de mulher recebeu críticas dos censores por causa de descrições naturalistas, que desmistificam o estereótipo de mulheres como santas. No heroísmo asséptico, a fisiologia e a biologia não existem. Mas, nos relatos, há mães que matam bebês, estupros de mulheres inimigas, canibalismo dos mais fracos, combatentes que menstruam pela primeira vez. Um soldado moribundo cujo último desejo é ver um seio de mulher. Ou uma soldada, que, numa explosão, fica só com as roupas íntimas e tenta salvar um companheiro. Sabendo que vão morrer, mulheres saem com todos que podem.
Svetlana entremeia sua voz à de suas entrevistadas, para contar os percalços com a censura, dificuldades com a publicação, e o processo da narrativa, em que os fatos importam menos do que a vida das personagens: é “a história do pequeno ser humano arrancado da vida comum e jogado na profundeza épica de um acontecimento enorme. Na grande História.” Escutar é mais valoroso do que interpretar.
Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch nasceu em 31 de maio de 1948 na Ucrânia, é uma escritora e jornalista bielorrussa. Filha de dois professores, pai bielorrusso e a mãe ucraniana, estudou jornalismo na Universidade de Minsk a partir de 1967. Graças ao escritor bielorrusso Ales Adamovich, abraçou o jornalismo literário, em que ressoam vozes da coletividade. Assim foi com A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, Vozes de Tchhérnobil e O fim do homem soviético.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER | Svetlana Aleksiévitch
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Cecília Rosas;
Tamanho: 392 págs.;
Lançamento: Junho, 2016.
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