O suicídio de James Orin Incandenza Jr. é o evento ao redor do qual orbita a trama de Graça Infinita, magum opus de David Foster Wallace, cujo suicídio completou uma década no último dia 12 de setembro. Dizer que a autoimolação é uma constante na literatura – e nas artes em geral – é incorrer em uma generalismo que pode, com grande probabilidade, cair na unanimidade burra de que tanto falou Nelson Rodrigues.
Wallace, três anos antes de tirar a própria vida, durante o discurso como paraninfo para os estudantes de Artes da Kenyon College – “Isto é água”, publicado no livro de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo –, abordou a necessidade de se fugir do padrão, seja aquele estabelecido pelas conveniências sociais ou pelas relações que o sujeito vai criando com o mundo à sua volta. A professora de Literatura Anna Legroski, mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa na fala do escritor a negação ao solipsismo e o sinal positivo ao que chama de “altruísmo gritante”.
Para a educadora, a condição de Wallace é singular na literatura. Considerado uma espécie do que pode ser dito como pós-pós-modernidade, o autor de Breves histórias com homens hediondos – ao falar com os jovens recém-graduados – se debatia na complexa relação do ser humano com as responsabilidades da vida adulta. “Essa configuração padrão é como se fosse um default de fábrica que vem com a gente. Isso tem a ver com o solipsismo, e o solipsismo vai gerar solidão, eventualmente. Você vai acabar ensimesmado com a dor da condição humana. Ele fala que: ‘Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem’”, explica, e Legroski completa: “me parece tragicamente irônico”.
Obviamente, Foster Wallace não foi o único escritor a se matar. Sylvia Plath – que teve o cuidado de vedar a cozinha para não intoxicar seus filhos ao abrir o gás no forno de sua casa –; Ernest Hemingway – cujo tiro na boca com sua espingarda favorita foi um modo de calar as doenças que se alastravam pelo seu corpo –; Primo Levi – que saltou no fosso do elevador do prédio em que morava, possivelmente, por não suportar as lembranças dos dias no campo de concentração e que formaram sua obra prima: É isto um homem?; ou Virginia Woolf – cujas pedras no bolso a levaram para o fundo do Rio Ouse. Todas essas vidas, e suas mortes, foram cheias de densidades incapazes de serem descritas ou decifradas.
Em certa medida, o suicídio se relaciona com a reflexão sobre as condições de vida. O filósofo e professor Mário Borges argumenta que a filosofia nasceu com o suicídio de Sócrates que teria abdicado da própria à privação do seu direito de pensar. “Uma vida sem reflexão é uma vida que não vale a pena ser vivida”, teria dito o filósofo. Segundo os estoicos, para os quais a vida é uma preparação para a morte, é preciso viver, como afirma Borges, “em consonância com a natureza” aceitando o sofrimento como parte da experiência de estar vivo. Sêneca, um dos nomes mais importantes dessa corrente, foi condenado por Nero a cometer suicídio, sentença que aceitou serenamente.
Séculos mais tarde, Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, observaria a morte como uma afirmação irrevogável da vida. “A morte é uma fuga do sofrimento, pois se pudesse escolher entre uma vida feliz, satisfatória, não escolheria morrer, mas é a agonia, o sofrimento da vida que leva as pessoas a desistirem da vida”, ressalta o professor, que relembra o suicídio como um dilema ético para os cristãos. Em Cidade de Deus, Santo Agostinho de Hipona faria uma relação entre o quinto mandamento, “não matarás” e o suicídio.

Efeito Werther
O caso mais famoso a criar uma ponte entre o suicídio e a literatura é Os Sofrimentos do jovem Werther, romance epistolar de Goethe publicado em 1774 e sobre o qual recai a culpa por uma onda de suicídios em toda a Europa. De acordo com relatos, muitos jovens – identificados com o amor não correspondido entre Werther e Charlotte – dariam a si mesmos destino semelhante ao do personagem. Ainda que a comprovação dessa tese, que se arrasta ao longo dos anos, seja quase impossível, foi atribuído à avalanche de mortes trágicas – e autoimpostas – o nome de Efeito Werther, cunhado pelo professor David Philips, em 1974, em um artigo publicado na revista American Sociological Review.
Durante a sua pesquisa, Phillips descobriu que 26 – dos 33 casos de suicídio noticiados pelo The New York Times, entre 1948 e 1967 – causaram picos de suicídio nos Estados Unidos. Na prática, isso significa 12% de aumento nas tentativas de tirar a própria vida. Por isso, o professor chama esse fenômeno de suicídio contagioso. Para a professora Anna Legroski, no período em que Goethe criou Werther, o trágico estava conectado à beleza. “A melancolia exagerada e o sofrimento”, explica, “apresentavam uma pessoa mais complexa de sentimentos”. Os jovens whertheanos estabeleceram um séquito ao personagem, emulando inclusive o seu modo de vestir.
Se no século XVIII um amor não correspondido era suficiente para dar cabo de sua própria existência, em nossos dias, o mal do século é o imediatismo da juventude. Mário Borges alerta para a incapacidade dos jovens em lidar com situações adversas e com resultados diferentes do esperado. De acordo com o filósofo, a frustração é intrínseca ao processo de crescimento e amadurecimento do ser humano. “Ninguém está disposto a sofrer”, comenta, e arremata: “com a juventude esse sentimento talvez seja mais evidente, pois ainda não tem experiência de vida suficiente para entender que não temos tudo o que desejamos na vida e que as frustrações fazem parte do processo de amadurecimento. Eu diria que isso é mais ‘culpa da cultura’ do imediatismo do que dos próprios jovens”.
Se no século XVIII um amor não correspondido era suficiente para dar cabo de sua própria existência, em nossos dias, o mal do século é o imediatismo da juventude.
A pesquisa “Violência Letal: Crianças e Adolescentes do Brasil“, de 2013, mostra que de todas as mortes de crianças e adolescentes, até 19 anos, 1% era causado por suicídio. Se o grupo analisado for dos jovens entre 16 e 17 anos, a situação é ainda mais preocupante, subindo para 3%. Tendo como base a mesma faixa etária, os dados, veiculados pelo Nexo, são alarmantes. Em 2013, para um grupo de 100 mil jovens, a taxa de suicídio era de 4,1%. A mesma apuração, realizada em 1980, apontava que, para o mesmo grupo, o número correspondia a 2,8%.
Nesse sentido, a imprensa – salvo algumas exceções, em geral, relacionadas a personalidades famosas – omite a questão do suicídio. Quando Marilyn Monroe morreu, a foto da atriz morta – com um vidro de remédios ao lado do corpo – foi estampada em alguns jornais. Anos atrás, as imagens de Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, morto em 1994, foram divulgadas pela polícia de Seattle. Poucas horas depois, elas ilustravam matérias em sites de todo o mundo.
Silêncio constrangedor
A discussão em torno do suicídio, em especial dos jovens, voltou à tona recentemente com a série 13 Reasons Why – cujo livro que a originou fez parte de listas escolares de escolas de Curitiba, muito antes de a produção se tornar alvo de debate e controvérsia – e o longa-metragem Ferrugem, gravado em solo curitibano e que foi eleito melhor filme no Festival de Gramado deste ano.
Ambas as obras tratam da questão do suicídio frente ao bullying ou cyberbullying, temas que estão em voga quando falamos em educação. Jessica Candal, corroteirista de Ferrugem, durante participação no podcast MedCast, comenta sobre a necessidade cada vez mais premente de falar sobre o assunto. Levar o debate para o campo da arte é uma oportunidade de tirar o questionamento do ambiente acadêmico para escutar também os jovens.
A opinião é compartilhada por Anna Legroski, para quem o silêncio é somente uma armadilha para tapar o sol com peneira. Segundo a educadora, não tocar no assunto é uma estratégia falha e que apenas atrapalha. “É preciso discutir, contar casos. Não é ignorando que coisas difíceis não acontecem”, avalia. Legroski alerta, entretanto, que a abordagem deve não deve enaltecer o fato, mas conscientizar sobre as consequências, inclusive, os danos psicológicos às famílias de quem cometeu suicídio.
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Outro problema é a noção de felicidade. Pela lógica de Platão, existem dois mundos: o sensível – aquele em que vivemos – e o ideal – que ser o mundo perfeito. Para o filósofo, o homem deveria, vivendo no mundo sensível, abstrair-se das imperfeições em busca de uma perfeição absoluta. A ideia de felicidade, praticamente inatingível, acaba sendo responsável por criar a sensação de frustração.
Na tentativa de oferecer opções que contrapõem esse cenário idealista platônico, Mário Borges cita o francês Luc Ferry, para o qual a felicidade não existe, mas sim momentos de felicidade. “Temos que aprender a viver serenamente diante de todas as circunstâncias da vida. Não ser excessivamente entusiasmado com os momentos de alegria de forma que pensemos que vai durar para sempre, nem devemos ficar desesperados quando sofremos com alguma frustração”, reflete Borges.

Não-lugar
O sintoma mais imediato desse alheamento é o de não pertencer a lugar ou grupo algum – como se o sujeito ocupasse sempre o não-lugar criado por Marc Augé. Essa melancolia, que muitas vezes é particular dos jovens – “tenho quase certeza que eu não sou daqui”, como diria Renato Russo –, espelha a vontade de fazer parte de algo. Frankenstein, de Mary Shelley, ressalta a professora Anna Legroski, é uma alegoria para o sentimento de não estar ligado física e emocionalmente a algo.
Em um outro prisma, temos a exclusão premedita – e preconceituosa – e, claro, não consensual. Obviamente, situações extremas acabam por gerar consequências extremas. O tradutor e professor da UFPR, Caetano Galindo, que trouxe Graça Infinita para o português brasileiro, foi lacônico ao afirmar que causas de um suicida só cabem a ele. “Ninguém entende os motivos de um suicida. Ninguém”, disse, em um texto para a revista piauí quatro anos atrás, e acrescenta: “a única pessoa talvez capaz de entendê-los é morta pelo ato.”
Compreender a natureza humana, até mesmo para o mais sábio dos filósofos, está às raias da especulação. Lampejos como os de Sócrates – “conhece-te a ti mesmo” e “só sei que nada sei” –, de Sêneca, de Wallace e até de figuras pop como Ian Curtis – “me envergonho pelas coisas que passei e pela pessoa que sou” – e Jim Morrisson – “pessoas são estranhas quando você é estranho” – ajudam a orientar ou, ao menos, aliviar um pouco a angústia, angústia essa que, para Nietzsche, faz parte da condição de estar vivo.