As sagas constituem um gênero literário de difícil definição e sobre o qual já se falou na Escotilha. Em linhas muito gerais, quando lemos sagas, lidamos com histórias outrora da tradição oral que, após a chegada do cristianismo em terras islandesas (séc. X), passaram a ser escritas. As sagas estão, portanto, enredadas na história e na memória.
No Brasil, são pouco conhecidas. As exceções também são poucas, porém honrosas: temos a Saga dos Volsungos (cujos descendentes vão de Wagner a Tolkien, esta publicada em nossas terras tropicais pela Editora Hedra, em 2008, com tradução de Théo de Borba Moosburger) e o livro Três Sagas Islandesas, publicado pela Editora da UFPR em 2007, contando com tradução, posfácio e notas também de Théo de Borba Moosburger. Em ambos os casos, lidamos com traduções diretas (isto é, diretamente do islandês medieval).
Em Três Sagas Islandesas, teremos contato com as seguintes sagas (a palavra saga significa algo como história ou narrativa): “A Saga de Hrafnkell Freysgoði”, “A Saga dos Groenlandeses” e “A Saga de Eiríkr Vermelho”. Embora de nome mais complexo, Moosburger afirma que “A Saga de Hrafnkell Freysgoði” é ideal para quem deseja se iniciar no gênero; seguindo seu conselho (palavra que é deveras importante nesta saga), gostaria de dedicar minha atenção a ela.
“Quem avisa o próximo não é culpável”, dizia um velho ditado nórdico.
Dividida em 10 capítulos, a saga narra a história de Hrafnkell, a qual se passou “nos tempos do rei Haraldr, o de Belos Cabelos, filho de Hálfdanr, o Negro, filho de Guðrøðr, o Rei Caçador […]”. Aqui é importante ressaltar que as sagas geralmente se iniciam com uma série de informações genealógicas, com vistas a situar o leitor no tempo e manter viva a memória dos tempos da colonização da Islândia.
O Anônimo do séc. XIII não fala como estavam vestidas as personagens, não diz como estava o clima (em se tratando de Islândia, contudo, já podemos ter alguma noção…), não descreve o lugar. Sua pena se ocupa do tempo e dos atos dos homens. O resto é acessório.
Saberemos que Hrafnkell era devoto do deus Freyr e cumpria papel de goðorð, autoridade administrativa e sacerdotal onde vivia (as notas de Moosburger são meticulosas e esclarecedoras). Também saberemos que Hrafnkell tinha um cavalo chamado Freyfaxi e não aceitava que ninguém o cavalgasse.
Em termos especificamente de estilo, já podemos pensar em um ponto importante: as sagas não se querem ficcionais, mas históricas; portanto, sua narrativa diz apenas “o essencial”: o Anônimo do séc. XIII não fala como estavam vestidas as personagens, não diz como estava o clima (em se tratando de Islândia, contudo, já podemos ter alguma noção…), não descreve o lugar. Sua pena se ocupa do tempo e dos atos dos homens. O resto é acessório.
Hrafnkell contrata “um homem chamado Einarr” para cuidar de seu rebanho e lhe avisa: “Freyfai anda solto na parte de cima do vale com sua manada. Tu deverás cuidar dele, no inverno e no verão […] Eu quero que tu nunca venhas montado nele, não importa o quanto tu necessites disso, pois eu fiz um grande voto de que eu deveria matar o homem que nele montasse.”
Hrafnkell avisou e, portanto, “não pode ser culpável”. Einarr montou no cavalo e acabou morto por Hrafnkell. E então saberemos que o goðorð não tinha o hábito de pagar o que devia quando matava alguém (a compensação). O pai de Einarr, Thorbjörn, toma conhecimento do homicídio e decide exigir a compensação, o que lhe é negado. Decide então, vejam só, mover um processo (!) contra Hrafnkell, o qual acaba sendo declarado um “total proscrito” pela Assembleia. O “total proscrito”, explica-nos Moosburger em nota de rodapé, “tinha suas terras tomadas e poderia ser morto sem consequências legais”.
E então uma das cenas mais emblemáticas, a meu ver, acontece. Quando as terras de Hrafnkell vão ser tomadas, temos a seguinte passagem:
“Então eles pegaram Hrafnkell e seus homens e lhes atam as mãos às costas. Depois disso arrombam o galpão e tiram cordas de cima de uns ganchos, e em seguida pegam as suas facas e lhes cortam furos acima dos seus calcanhares, e passam as cordas por eles, e assim os penduram na trave, e assim amarram os oito juntos então”.
Podemos perceber o quanto de oralidade há neste fragmento. Parece que ouvimos a voz do Anônimo do séc. XIII nos contando com a maior naturalidade do mundo que “assim os penduram na trave”. A profusão de “e”, de “então” e de “assim” conferem um grau de oralidade à narrativa e, provavelmente, esta é uma das maiores características das sagas.
Outro fato importante de notar é: o Anônimo escreveu no séc. XIII, isto é, depois da cristianização e muito tempo depois de os fatos narrados terem tomado lugar. É uma voz do passado narrando um passado ainda mais remoto.
Esta voz já cristã é, muito provavelmente, a razão de Hrafnkell dizer, quando vem a saber que mataram seu cavalo Freyfaxi e incendiaram o santuário de seu deus de devoção, Freyr: “eu penso ser um tolice crer em um deus”. Esta frase gera várias inquietações: o cristianismo estava realmente bem estabelecido na Islândia do séc. XIII? A sociedade pagã viking tinha lugar para uma afirmação próxima ao ateísmo? As sagas não estão embebidas da cosmovisão cristã dos autores que a escreveram?
Contudo, estas são perguntas que um historiador pode responder. A mim, do campo da literatura, resta não contar o que acontece com Hrafnkell e, especialmente, o assombro de uma grande tradição literária que influenciou, direta e indiretamente, importantes obras da literatura mundial, ter surgido, em plena idade média, na bela, pequena e distante Islândia.