Nascido na província de Poltava, atual Ucrânia, Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) é considerado o pioneiro na prosa russa moderna – pontuação embasada pela célebre frase de Fiódor Dostoiévski, “todos nós viemos de ‘O Capote’”, em alusão ao seu conto mais famoso. Em suas obras, o escritor trouxe à tona uma visão satírica da realidade russa na primeira metade do século XIX.
Em um dossiê sobre a literatura russa, publicado na revista Cult, Arlete Cavalieri publicou um texto sobre a arte de Gógol e afirmou que ele foi “um dos intérpretes mais agudos do período petersburguês da história russa sob as ordens do czar Nicolau I. Seus contos, novelas e peças de teatro metaforizam, por assim dizer, o caráter sinistro, estranho, absurdo e espectral que adquirira o império russo e a sua capital-símbolo, São Petersburgo, durante o regime de um dos mais autocratas governantes da Rússia czarista”.
Dessa forma, os cenários urbanos da capital e os “pequenos homens”, humilhados e ofendidos, que trabalham em cargos oficias fazem parte dos aspectos essenciais da obra do escritor. Soma-se a eles, como pontuado por Paulo Bezerra no posfácio “As múltiplas facetas de Gógol” no livro O capote e outras histórias, os “temas do mundo rural ucraniano, representados através de procedimentos do mito e do folclore”.
Essas figuras são tratadas juntas com a nova perspectiva que Gógol traz para o elemento fantástico na literatura. Nos textos do escritor, a realidade é construída sobre alicerces caóticos e desconexos que se firmam pelo acúmulo de detalhes e de elementos contraditórios. Em um movimento dialético, o sobrenatural e o insólito surgem a partir do real. O resultado desse choque é configuração de um fantástico naturalizado e grotesco, que une aspectos trágicos e cômicos com elementos folclóricos, de terror, o humor e a sabedoria popular.
Sendo assim, os temas da morte, da bruxaria e do sobrenatural são alvo de escárnio. Passam por um processo de “desdemonização” e são submetidos a um rebaixamento cômico, onde as “imagens são trazidas para um convívio com os homens, no qual a antiga figura assustadora do diabo, imposta pela Igreja, passa a circular num ambiente muito mais tolerante e humano”, afirma Paulo Bezerra no posfácio.
Ainda que distantes das histórias mais folclóricas, como os contos “Viy” e “Noite de Natal”, “O Capote” segue a mescla de elementos de humor, ironia e melancolia com um personagem tragicômico que vaga pelas ruas da capital e se entrega à sua obsessão. Neste conto, acompanhamos a história de Akáki Akákievitch, um burocrata designado ao mais baixo cargo na hierarquia dos serviços públicos: conselheiro titular.
Akáki não tem prazeres na vida para além das cópias que realiza, chegando a levar trabalho para casa todas as noites para ter algum deleite antes de dormir. Não tem amigos, namorada ou qualquer outro hobby que o divirta. Vivendo na miséria de seu baixo ordenado e na iminência do rigoroso inverno russo, ele se vê na necessidade de comprar um capote novo quando o antigo se desgasta a ponto de rasgar na região dos ombros e das costas.
Como solução, conversa com seu alfaiate e juntos planejam um novo capote – costurado às custas de meses de fome e do resgate de todas as suas economias. No fim do percurso, a peça de roupa se torna uma obra-prima do alfaiate. O casaco chama atenção de todos os outros funcionários na repartição. Akáki e seu puído roupão deixam de ser alvos de chacotas e, em comemoração, o chefe do departamento dá uma festa em que Akáki se vê obrigado a ir. No entanto, é por causa dessa festa que o conselheiro e seu capote sofrem uma fatalidade.
Ao analisar o conto, Paulo Bezerra destaca a importância do nome de Akáki para a caracterização da essência do personagem. O tradutor explica que sua repetição sonora “se constitui num exercício de gagueira (…) que usa uma linguagem quase desprovida de articulação, como se o homem ainda não tivesse criado uma linguagem estruturada”. Acrescenta-se a isso o seu sobrenome Bachmátchkin, derivado de báchmak, que significa sapato, e temos a imagem de um ofendido feito para ser pisado.
No entanto, durante a leitura percebi que tais características se unem também à construção de uma paisagem quase alegórica da Rússia moderna. Na atmosfera de indefinições, os cenários e sujeitos deixam de ser apenas inominados para adquirir uma certa aura arquetípica.
A exemplo do seu nome, Akáki também se expressava por meio dessa linguagem rústica. Como descreve Gógol, “é bom esclarecer que Akáki Akákievitch se expressava o mais das vezes através de preposições, advérbios e, por fim, de partículas que não significam terminantemente nada. Se a questão era muito complicada, ele tinha até o hábito de nunca terminar a frase, de sorte que, ao começar, com muita frequência, sua fala pela frase: ‘palavra, isso é mesmo… aquilo’, depois não acrescentava nada e acaba esquecendo por achar que já tinha dito tudo”.
O próprio “aquilo” que Akáki usa para completar diversos diálogos ao longo do livro é um termo de difícil tradução e vem do russo “tóvo”, que significa “algo indefinido” mas também “qualquer coisa”. Como dito por Bezerra, é uma “impossibilidade de articulação do discurso, uma impossibilidade de comunicação” configurada por ele desde o berço, como um destino. Tal falta de articulação e senso determinístico se refletem nas descrições dos personagens, onde os sujeitos são fortemente ligados aos seus cargos e poucos tem nomes próprios.
No entanto, durante a leitura percebi que tais características se unem também à construção de uma paisagem quase alegórica da Rússia moderna. Na atmosfera de indefinições, os cenários e sujeitos deixam de ser apenas inominados para adquirir uma certa aura arquetípica. Em alguns trechos, é notável essa construção. Por exemplo, ao descrever o prédio do alfaiate Gógol escreve: “ao subir a escada que levava a Pietróvitch, escada que, sejamos justos, vivia toda encharcada de água, lavadura e inteiramente tomada daquele cheiro de álcool que consome os olhos e, como se sabe, é constante em todas as escadas de serviço de Petersburgo”.
Sujeitos, cenários e objetos são construídos com base nessa lógica ao longo da narrativa e justificam a importância de Gógol na representação satírica da Rússia moderna. É interessante notar que, em alguns momentos, a correspondência continua vigente. Serve de exemplo a importância de cargos militares no poder político, independentemente do rosto por trás da farda. Escreveu Gógol: “Pietróvitch apanhou o roupão, estendeu-o inicialmente na mesa, examinou-o longamente, meneou a cabeça e estirou o braço na direção da janela, apanhando no parapeito uma tabaqueira redonda com o retrato de um general, não dava para ver quem era porque um retângulo de papel cobria o lugar do rosto eu uma dedada havia furado”.