Clarice Lispector, em sua última entrevista, publicada somente após a sua morte, disse que escrevia como quem bebe água. Para a autora de Felicidade Clandestina, escrever é tão urgente quanto cotidiana, tão elementar quanto necessária. Em Aranhas, Carlos Henrique Schroeder usa a metáfora dos aracnídeos para tecer uma literatura realista, que explora as contradições e os absurdos de uma realidade fugidia.
Os contos que dão forma ao livro – e levam os nomes populares e científicos de diversas aranhas – são investigações desse mesmo cotidiano clariceano, e que se debruça sobre os abismos particulares de personagens esgotados. Ao contrário de Lispector, o escritor catarinense tece um fio condutor que percorre toda a obra para desembocar em uma espécie de apoteose narrativa, uma construção simbólica em cada uma das histórias.
Com uma leva cínica, o autor traça o retrato de um país hipócrita – capaz de negar as suas próprias raízes – e de uma sociedade escondida pelo tênue verniz da civilidade. Ao mesmo tempo, faz um passeio pelos bosques da ficção, como em “Golias-comedora-de-pássaros (Theraphos blondi)” em que recria Gregor Samsa na forma de uma aranha gigante. Nesse jogo de releitura e roubo, Schroeder homenageia o autor argentino Pablo Katchadjian, que despertou a fúria – pessoal e judicial – da viúva de Jorge Luis Borges ao recriar o relato “O Aleph”.
Nesse sentido, se por um lado Aranhas é um olhar importante para o Brasil de hoje, é também um diálogo interessante e bastante inteligente com a literatura latina – principalmente, Borges, Cortázar, Puig, Aira, Copi. São ecos que percorrem os textos, que ajuda a entender o limite da criação e da influência.
Aranhas é um livro com muitas obras dentro de si, uma experiência de linguagem, temática e leitura. É um contraponto à visão obscurantista que tem dominado um país assolado pelo vírus e pelo verme.
Ideias invisíveis
Schroeder brinca com as ideias invisíveis. Em “Saltadora (Evarcha culicivora)”, por meio de uma tensão corrente e constante, Ana parece enfiada no universo aterrador de um típico giallo de Mario Bava. O conto “Teia de funil (Atrx robustus)” evoca o duplo – em sua constituição dostoieviskiana – para expor os conflitos de uma família arruinada, afundada em sua própria lama.
Enquanto investiga a sua obsessão pelos aracnídeos, Carlos Henrique Schroeder faz de Aranhas um tratado sobre a solidão nas cidades. Como História da chuva e As Fantasias Eletivas, o escritor dá voz aos silenciados e, em simultâneo, escancara a ambivalência de valores e percepções. “De parede (Selenops spixi)” – narrativa sobre uma lésbica cujos problemas com a sexualidade identidade e sexualidade – e “Tarântula de botas (Avicularia metálica)” – a gênese de uma Capitu do século XXI – são os dois lados de uma mesma moeda.
Aranhas é um livro com muitas obras dentro de si, uma experiência de linguagem, temática e leitura. É um contraponto à visão obscurantista que tem dominado um país assolado pelo vírus e pelo verme.
ARANHAS | Carlos Henrique Schroeder
Editora: Record;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2020.