Quando eficaz, a literatura de ficção científica exerce, além de um complexo trabalho especulativo, uma poderosa função reflexiva: por meio de cenários hipotéticos, o sci-fi reestrutura os mecanismos mais básicos da sociedade e nos fornece reflexões aguçadas acerca daquilo que realmente somos – ou seja, aborda a intangível e atemporal essência humana, o próprio desafio da nossa existência no universo. Tal objetivo é atingido quando a ambientação, as temáticas e as personagens que carregam a trama são desdobramentos lógicos da grande questão norteadora, resumida em duas palavras cruciais: “E se…”
Neste sentido, Carbono Alterado, obra de Richard K. Morgan que inspirou a recente série homônima da Netflix, começa da maneira certa. A questão central formulada pelo autor, presente desde o início do livro, segue essa mesma fórmula básica: “E se, em um futuro distante, a própria mortalidade se tornasse ultrapassada?”, “E se, superados os limites biológicos do corpo humano, as estruturas de poder se mantivessem as mesmas?” – e assim por diante.
O método escolhido por Morgan para desenvolver essas ideias é uma mescla entre as convenções do sci-fi e da literatura policial, em especial do noir – uma combinação já antiga, estabelecida com sucesso em obras como Androides Sonham Ovelhas Elétricas?. Infelizmente, apesar de relativamente competente como thriller em certos aspectos (ritmo narrativo veloz, mistério central interessante e cenas de ação organicamente inseridas no enredo), Carbono Alterado falha em se destacar da massa de obras apenas medianas como ficção científica propriamente dita, resultando em um livro que é simplesmente menor que a soma de suas partes.
Carbono Alterado falha em se destacar da massa de obras apenas medianas como ficção científica propriamente dita, resultando em um livro que é simplesmente menor que a soma de suas partes.
A trama tem início quando o criminoso e supersoldado Takeshi Kovacs é trazido à Terra para investigar o suposto suicídio do magnata Laurens Bancroft, um poderoso semi-imortal que volta à vida em um novo corpo e busca soluções para o misterioso ocorrido. Ao desenrolar do enredo, Kovacs se vê cercado de intrigas e conspirações complexas, envolvendo os mecanismos de poder que regem esse mundo onde os ricos vivem como semideuses, prolongando suas vidas indefinidamente – e perdendo parte da sua humanidade e empatia no processo.
As questões levantadas são complexas e promissoras na teoria, mas, infelizmente, a execução não faz jus aos dilemas filosóficos apresentados como cerne do romance. Parte da sensação de potencial desperdiçado de toda essa história vem da narração em primeira pessoa empregada por Morgan: a voz de Kovacs é genérica, faltando carisma à sua linguagem ou mesmo observações memoráveis acerca do mundo que o cerca.
Pior ainda, Kovacs é uma personagem bastante fraca e rasa (para não dizer objetivamente detestável). Não, não há nada de essencialmente errado em se ter um anti-herói como ponte para esse universo alternativo; o problema é que o protagonista em questão é simplesmente apático demais, desprovido de grandes dilemas ou complexidade moral. Além disso, há diversas instâncias em que o “contar” predomina sobre o “mostrar” na narrativa de Morgan, com passagens explicativas claramente presentes apenas para auxiliar o leitor, quebrando a imersão orgânica na ambientação da história.
O problema principal, contudo, é que nada se aprende ao término do livro. Infelizmente, ao guardá-lo na estante, continuo a mesma pessoa que eu era ao abrir as páginas de Carbono Alterado – e isso é exatamente o oposto do que a grande ficção científica é capaz de fazer. Uma pena.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]CARBONO ALTERADO | Richard K. Morgan
Editora: Record;
Tradução: Edmo Suassuna;
Tamanho: 490 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.
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