Na semana passada, na newsletter Papéis Inesperados – que envio a cada quinzena –, sugeri a leitura de um texto na The Atlantic sobre como as adaptações literárias, sobretudo para o streaming, têm moldado a maneira como a literatura é produzida e consumida. Esse tema não saiu da minha cabeça.
Não é de hoje que literatura serve de base para o cinema ou para a TV, porém, parece que nunca ela foi tão necessária para alimentar o mercado de cifras estratosféricas do audiovisual. O ano de 2019 foi para Netflix, aponta a matéria – citando um texto da Publisher’s Weekly, a sua grande temporada de compra de direitos para essas adaptações. E nesse momento, de acordo com o Rotten Tomatoes, 125 adaptações estão em desenvolvimento. Temos no horizonte mais de uma centena de potenciais fenômenos. Sinceramente, espero que não.
Qualquer lista de mais vendidos mostra livros que se tornaram filmes e séries ou que, devido ao seu desempenho, se tornarão. Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, já teve os direitos comprados e deve, em breve, aparecer nas telas. É o mesmo caso da Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante, que se transformou em série após o sucesso dos livros – se bem que houve uma adaptação de um dos primeiros romances da escritora italiana em filme nos anos 1990.
Dom, romance semificcional de Tony Belloto, é uma das séries mais assistidas na Amazon Prime brasileira. A saga Bridgerton, de Julia Quinn, que soma 9 livros, foi coqueluche na Netflix e as obras apareceram em diversas posições nas listas de best-sellers em todo o mundo – ao longo de vários meses. E nem precisa dizer nada sobre O Gambito da Rainha, livro esquecido de Walter Tevis, o autor d’O Homem que caiu na Terra – adaptado para o cinema com David Bowie como protagonista – ou de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, que ficou de lado por décadas até The Handmaid’s Tale chegar à TV.
Lembremos também que alguns longas clássicos – como Psicose e O Poderoso chefão – nasceram de romances medíocres. Hitchcock, por sinal, sempre dizia que os piores livros sempre davam nas melhores adaptações. Talvez o despudor literário ofereça maior liberdade aos roteiros. Não sei.
De uma maneira ou de outra, todos esses casos, com seus méritos, foram que não dependeram da crítica para alcançar seu “estrelato”. Nem mesmo Torto arado. Muito antes de se tornar uma quase unanimidade na imprensa, o livro já havia alcançado um público que poucas vezes se viu por aqui. E, nesse sentido, o romance tem um trunfo importante e interessante: despertar a leitura em quem não tem o hábito.
Toda essa incapacidade de ler o mundo dos livros advém da inaptidão de saber escolher qualquer coisa.
Na prática, isso significa que a leitura, e as escolhas de leitura, principalmente do leitor médio, estão condicionadas à moda mais recente. Claro, isso é uma generalização. É pouco provável que o leitor de Game of thrones se debruce sobre Bridgerton, mas vai saber. A questão, portanto, é justamente como as adaptações influenciam e impulsionam o consumo da literatura.
Essa terceirização da curadoria – colocamos nas mãos dos executivos das produtoras – é um grande mal. Até porque é um mal duplo: metem o bedelho no que lemos e no que assistimos. E tudo isso ao mesmo tempo. Matamos os escritores e cineastas indie com uma única bala. Volto ao texto que escrevi semanas atrás sobre o papel das livrarias de rua e dos livreiros e editores independentes como peças fundamentais na promoção mais democrática – palavra perigosa essa, não? – e na descentralização da literatura.
Toda essa incapacidade de ler o mundo dos livros advém da inaptidão de saber escolher qualquer coisa. E, aqui, a literatura é só mais um na conta. No imediatismo do dia a dia, potencializado pela pandemia e pelo home office, ler e ver filmes/séries não pode ser um sufoco. Não são poucas as vezes em que zapeamos os serviços de streaming e não encontramos coisa alguma que nos agrade. O mesmo acontece com os livros. Fuçamos os sites e fechamos um carrinho com seis ou sete livros escolhidos pelos algoritmos. Nenhuma ou poucas indicações humanas. Ler é, antes de tudo, um exercício de liberdade e de angústia.