Wittgenstein (1889 – 1951) dizia – no clássico e complexo Tractatus Logico-Philosophicus – que tudo aquilo que habita na imaginação pode existir no mundo real. Essa lógica parece ter orientado toda a literatura de Jorge Luis Borges (1899 – 1986), ou ao menos a sua obra essencial e ainda que indiretamente, pois o portenho jamais mencionou o austríaco. De todos os relatos de Borges, dois saltam aos olhos sob a perspectiva da lógica filosófica: “A Biblioteca de Babel” e “Pierre Menard, autor de Quixote”, ambos de Ficções.
Enquanto no primeiro conto Borges se dedica ao esboço conceitual de uma biblioteca total, capaz de conter não apenas todos os livros do mundo e todos o conhecido que habita o universo, mas em cuja formação labiríntica está a perdição do homem. No texto seguinte, Borges investiga uma busca pela obra invisível de Pierre Menard, um francês falecido há pouco – o narrador afirma ter ido ao enterro – e que havia dedicado boa parte da sua vida à tradução perfeita de Dom Quixote para o idioma de Napoleão. Nos dois casos encontramos a santíssima trindade dos elementos do cosmos borgeano: labirintos – em “Pierre Menard, o autor de Quixote”, esse labirinto é metafórico e envolve o mistério do conto –, bibliotecas e a literatura.
A história de Menard avança em outro campo precioso para o argentino: a questão do duplo. Borges escreveu o conto como um desafio à sua própria capacidade intelectual após sofrer um gravíssimo acidente na véspera do Natal de 1938. A prosa de Borges, até àquele momento, era parca, preferia escrever poesia. Não seria exagero algum dizer que autor e personagem se cruzam na vaidade. Anos mais tarde, já cego, Borges seria como Menard e faria d’O Informe de Brodie e História universal da infâmia um instrumento de tradução das histórias que povoavam a sua imaginação.
Pierre Menard, conto e personagem, escancara outra obsessão de Borges: a questão do duplo. Menard não traça um plano de superação ou equiparação ao autor de Quixote, quer ele mesmo ser um duplo de Cervantes. O duplo nasce como um elemento de vindicação, de negação da realidade para a reconstrução do eu – o self. Essa estratégia, que inicia em Ficções, desde o conto de abertura que emula um universo paralelo advindo de uma enciclopédia – se transforma em um elemento narrativo claro em “O Outro”, o primeiro relato d’O Livro de areia, onde o Borges já no final da vida encontra o seu duplo jovem e ali travam as implicações de toda uma vida.
Borges entendeu como poucos a lógica de Wittgenstein e a literatura de Dostoievski, criou uma obra labiríntica e ampla, impossível de ser imitada.
Em “Pierre Menard, autor de Quixote”, o confronto é subjetivo, se dá na obra invisível do tradutor, mas é o que realmente o consome, o toma o tempo e a vida. Não por acaso, os capítulos que Menard escolhe para traduzir são espécies de reflexões sobre armas e letras, talvez os pontos mais filosóficos de Dom Quixote. Portanto, está Menard também interessando nessa espécie de cruzada silenciosa, assim o próprio Borges. Nesse sentido, quando aparece um dos trechos transpostos ao francês, ele é idêntico ao original, mas Menard acredita no sentido mais amplo – quase secreto – que guarda a sua versão. São caminhos que se bifurcam e levam a uma casa de espelhos.
A história, mãe da verdade; a ideia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais – exemplo e aviso do presente, advertência do futuro – são descaradamente pragmáticas.
Também é vívido o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard – no fundo estrangeiro – padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que emprega com desenvoltura o espanhol corrente de sua época.
Menard, a metáfora favorita do ofício do tradutor, é como o sujeito de “A Memória de Shakespeare” que, por um motivo divino e aleatório, passa a se lembrar de tudo aquilo que o Bardo de Avalon viveu. Esses dois personagens de Borges são gêmeos em sua natureza, se espelham na essência de sua gênese e, por isso, são também duplos. O que os desune é que enquanto o primeiro é voluntário na sua causa, sobre o segundo recai uma virtude que não escolheu e que opera como um grande fardo.
Emma Zunz, heroína de conto homônimo, vive toda a sua vida sob o signo do duplo para vingar a morte do pai. Como Menard, ela é a mesma e a outra. Nesse sentido, Borges deve muito a Dostoiévski (1821 – 1881) com seus personagens de subsolo, seus duplos que advém de espaços em branco ou invisível. Quando publicou O Duplo, romance que seguiu a Gente pobre, Dostoiévski disse que jamais poderia contribuir mais com a literatura que criação daquela peça experimental, tão mal-recebida em sua época. E de fato, ali nascia a gênese de uma apropriação que faria parte da cultura universal de uma forma única.
Borges entendeu como poucos a lógica de Wittgenstein e a literatura de Dostoiévski, criou uma obra labiríntica e ampla, impossível de ser imitada. “Pierre Menard, autor de Quixote” confirma o Maestro como um nome fundamental da história literária e é a base de toda uma obra precedente na América Latina.
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